Maíra 28/09/2018Entre rinhas de cachorros e porcos abatidosNa primeira novela, Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, conhecemos Gerson e Edgar Wilson, dois homens que trabalham abatendo porcos e que tem como migalha do que poderíamos chamar de diversão a rinha de cachorros, onde apostam em batalhas que, frequentemente, vão até a morte de um dos cães. O que esses homens tem de bestas tem também de verdadeiros, e uma coisa que chamou a minha atenção logo de cara é o modo como é difícil amá-los, mas é mais difícil ainda não gostar deles.
“Para homens como Gerson e Edgar Wilson isso é recompensa: o fim do dia. A trégua do sol. A sensação de dever cumprido. Sentem-se dignos de desfrutar das coisas simples e práticas da vida”.
É uma narrativa bastante violenta, mas que consegue, de alguma forma, ser bela. Maia sabe muito bem manipular as palavras a seu favor, demonstrando um domínio que poucos atingem sobre a língua portuguesa e como usá-la da melhor forma para contar uma história forte e poderosa. Edgar Wilson, em especial, chama atenção por sua complexidade e pelo modo como, passado o choque inicial, compreendemos e até nos identificamos, até certo ponto pelo menos, com o modo como ele se comporta dentro daquele contexto. Pois o mesmo homem capaz de matar com toques de crueldade é capaz de pensamentos como este:
“Dias tristes podem ser frios ou quentes, cinzas ou azuis. E as sombras revestem as almas, desejos e pensamentos. E as sombras nem sempre são nossas, podem ser de qualquer um. Do muro ao lado, da onda do mar, da imensa asa no céu. Às vezes, até as estrelas parecem fazer sombra. Mesmo mortas, insistem em ofuscar com seu insistente sendo de infinito. E ao pensar nas estrelas, às vezes ele gostaria de ter uma escadaria para o céu. Para apagá-las com um sopro”.
Na segunda novela, O Trabalho Sujo dos Outros, Erasmo Wagner, um gari, nos apresenta ao outro lado da riqueza e da vida contemporânea: quanto mais dinheiro temos, mais lixo produzimos. Vemos o quão perigoso e difícil pode ser o trabalho com o lixo, além de o mesmo tornar a Erasmo e seus colegas presenças invisível em meio a uma sociedade que não quer lidar com os seus restos, quer apenas se ver livre dele.
“Não importa sua cor, seu cheiro, seu paladar. Não importa o que pensa, deseja, planeja ou sinta. O que importa é que recolha o lixo, leve-o para bem longe e desapareça junto dele”.
Embora também bastante forte, sinto que nesta segunda novela existe um peso maior de tristeza e melancolia. A forma como Erasmo se refere à sua profissão, e até à sua própria vida, tem constantemente uma carga de decepção e arrependimento, como se existisse um outro homem ali, por baixo daquelas camadas duras que as suas vivências construíram. Conhecer Erasmo Wagner foi uma experiência tocante e transformadora.
“Gostam de narrar tiros e mortes por bandidos. Grandes fatalidades. Catástrofes. Escândalos. Mas o trabalho que exercem é bem mais perigoso, assim como é grande a frequência de acidentes. Mas um sujeito que vive do lixo, que está tão próximo dele, não soa importante”.
Com uma capa que parece simples, mas contém muitos elementos destas duas novelas, e uma diagramação muito agradável de ler, o projeto editorial ajuda bastante na imersão mais completa possível nessas duas narrativas tão poderosas. No início, confesso que fiquei reticente sobre a validade de reunir duas novelas em um livro só para fins de publicação, mas as duas histórias acabam tendo uma interseção muito interessante e fica claro, no final da leitura, porque faz sentido publicá-las desse modo.
É uma leitura que, no todo, surpreende, transforma nossa visão sobre nosso país, nosso povo e nossos reais problemas, assim como faz com que nos encantemos, primeiramente, pela escrita da Ana Paula Maia e, em um segundo momento, aguça nossa curiosidade pela literatura brasileira, tantas vezes desprezada e que tem aqui um momento bastante especial.
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