Lucas 19/06/2021
Aula de jornalismo e história: O Brasil era (e é) muito maior do que se imaginava/imagina
"É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização".
Na falta de ideias mais criativas para iniciar a resenha deste que é, na minha humilíssima opinião, o mais significativo livro brasileiro que já li, tive que recorrer ao gênio que idealizou essa obra. Talvez seja o mais sensato mesmo, deixar que Euclides da Cunha (1866-1909) e sua erudição, ora sutil ora rebuscada, deem a partida ao relato que aqui será exposto.
Ponto inexplicável para esta falta de ideias mencionada acima é que ela não simboliza um esgotamento por parte deste que vos escreve. Também não é sintoma de uma leitura exaustiva, que exige muito compromisso do leitor. É, preponderantemente, originária de um grau de arrebatamento, de um colapso em termos de saber: salvo historiadores ou outros personagens que dedicam a vida à multifacetada história do Brasil, quem termina a leitura da obra prima de Euclides da Cunha sentirá que pouco sabia da dimensão do Brasil como país.
Os Sertões, lançado em 1902, é universalmente atrelado à Guerra de Canudos (1896-1897), conflito que abalou os alicerces da então incipiente república, instalada no Brasil em 1889. Evidentemente que o conflito protagonizado por esse pequeno povoado situado no norte da Bahia é o âmago da obra, mas é leviano dizer que Os Sertões trata apenas disso. Ele é, antes de qualquer outro tipo de definição rasa, um relato extremamente detalhado do interior do Brasil daqueles tempos, cujas nuances, se não estão nítidas ainda hoje, ajudam a explicar as dificuldades econômicas e sociais de incontáveis pequenas cidades distantes dos grandes centros brasileiros.
Tentar assimilar a forma com que Os Sertões foi construído passa pela compreensão do seu idealizador. O fluminense Euclides da Cunha foi um militar, matemático, jornalista e engenheiro, além de escritor, integrante da Academia Brasileira de Letras. É importante observar isso porque Os Sertões se fundamenta em uma profusão de estilos de descrição, que têm a ver com a grande habilidade do autor em narrar e que leva em conta todas essas aptidões. Prova disso é a forma com que a obra se subdivide, em três partes com abordagens distintas: A Terra, O Homem e A Luta.
A Terra, que corresponde à primeira (e menor) das três partes, é também a mais maçante delas, com o autor empregando aqui um olhar de especialista geográfico invejável: flora, fauna, solo, diferenças destes em relação a outros biomas brasileiros, explicações meteorológicas e históricas plausíveis das secas que ocorrem no sertão nordestino, etc., tudo é descrito com um detalhismo rigoroso. A parte seguinte, O Homem, já mais robusta, traz um Euclides da Cunha antropólogo, que explica o surgimento do sertanejo dentro da tríade formadora do povo brasileiro: índios, portugueses/imigrantes e escravos. Nesta toada, ele emprega alguns raciocínios bem crus, que hoje soam como racistas e separatórios, mas que precisam ser contextualizados com a realidade do final do século XIX, desprovida ainda de senso comum no que tange à compreensão de uma questão (que, pelos menos deveria ser) tão irrelevante como a cor da pele de cada um. Também tece vários comentários sobre o sertanejo e sua realidade, como as dificuldades das secas e seus meios de subsistência. A frase mais conhecida do livro ("O sertanejo é, antes de tudo, um forte") se insere aqui como uma síntese perfeita que descreve este bravo tipo brasileiro, tão comum no interior do país e que assume diversas denominações pelos rincões interioranos do Brasil (a menção ao gaúcho e seus costumes, mesmo que apresentadas as contraposições deste com o sertanejo, é uma prova dessa universalização).
Esta segunda parte também promove uma sutil mudança de enfoque e esta transição é feita de maneira genial. Ao final desta parte, Euclides da Cunha descreve "O" homem no sentido literal. Trata-se de Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), cearense e que ficou eternizado na história pela alcunha de Antônio Conselheiro, o "algoz" da Guerra de Canudos. São descritos aqui os aspectos, muitos deles místicos, outros apenas misteriosos, que tornaram este personagem símbolo de um povo oprimido, que reuniu-se em torno do seu líder e de uma fé doentia pelos seus credos. Posteriormente, Euclides fecha essa segunda parte descrevendo o palco do conflito: o arraial de Canudos, seus casebres, igrejas, ruas estreitas e cercanias, que ofereciam um relevo desfavorável a invasões.
Estes dois "personagens" (Antônio Conselheiro e Canudos) são os pilares da "ponte" que se faz entre as duas primeiras partes d'Os Sertões a sua derradeira parte, A Luta, que ocupa praticamente 3/4 da obra e trata de narrar as diversas escaramuças (ou as cinco expedições) que colocaram frente a frente tropas militares do governo (primeiro da Bahia, depois tropas federais e por fim tropas de diversos estados) e os pejorativamente chamados jagunços, seguidores do Conselheiro.
Por ser um livro de não ficção, seu apego à realidade dos fatos é inabalável. O desfecho do conflito de Canudos, dramático e sangrento (estima-se que mais de vinte e cinco mil pessoas, entre tropas legalistas e habitantes do povoado perderam a vida), assume um papel que jamais deve ser esquecido e cuja assimilação precisa ser deixada ao futuro leitor. Por isso, é preciso que Os Sertões seja agora avaliado não no que ele conta, mas no que ele representa dentro do cenário universal do Brasil, estando essa relevância irrestrita ao campo literário.
Sobressai-se na tarefa de ler a obra o estilo rebuscado de Euclides da Cunha, que prioriza uma abordagem detalhista ao invés de romancear seus apontamentos até o limite que um escritor observador pode fazer para não interferir na descrição que ele almeja. Paradoxalmente, quase 120 anos depois da publicação, é comum relatos de leitores que desistem da obra em função desse estilo, que é sim, difícil e que requer imaginação e compromisso do leitor. Do mesmo modo em que se destaca esse estilo, salta aos olhos a capacidade técnica do autor em detalhar e enumerar muitos aspectos do sertão nordestino e, posteriormente, das manobras militares que ocorreram em Canudos. Nas suas linhas, o leitor não encontrará apenas uma capacidade de observar e diferenciar solos, plantas, elevações, trilhas, cidades, vilas, fazendas, etc.: tudo isso está descrito com o embasamento técnico que Euclides tinha para a época. Pra quem servem as mais comuns plantas que existem na caatinga? Qual a explicação para a região sofrer com as secas? O que acontece com o solo no período de estio? Como se organizava a atividade pecuária, praticamente a única praticável no sertão? São todas perguntas que Euclides responde ou tenta responder, num esforço tocante de compromisso com a elucidação. Mas em alguns destes momentos, o autor traça linhas de grande refino literário, como a percepção dos sertanejos em relação às secas, a forma com que estas moldam o caráter do "matuto" e o êxodo, reservando momentos com uma beleza escrita incomparável.
Desse modo, a percepção negativa ou ressalvada do leitor de hoje acerca d'Os Sertões (especialmente na lentidão da primeira e segunda partes) precisa ser ponderada em função da distância temporal. As descrições do sertão que Euclides faz precisam ser analisadas sob o ponto de vista da época: hoje em dia, por exemplo, a internet está aí para traduzir em imagens e informações detalhadas o que Euclides fez "a mão" há mais de um século. É impensável, na atualidade, dimensionar o impacto que as descrições trazidas por Os Sertões despertaram nas "gentes grandes" das metrópoles da época, que passaram a conhecer com minúcias um outro Brasil, desconhecido das grandes povoações litorâneas. A comparação entre litoral e interior, um dos pilares narrativos, será mais bem mencionada à frente.
Essa solidez descritiva é um traço da nítida preocupação acadêmica do autor com o que ele relata. Chama a atenção o recorrente uso de notas de rodapé que não só citam a fonte das informações, como também discutem versões diferentes, quando é o caso. Os Sertões é um livro que pode ser enquadrado de diversas formas: uma não ficção jornalística, que hoje pode ser entendida como um "documentário" de um conflito sangrento ocorrido em solo brasileiro, é a melhor delas. Mas ele transcende qualquer aspecto "comercial" que a publicação em livro deste tipo de narrativa pode trazer porque ele segue uma técnica fundamental na Academia, que é a de discorrer determinado tema como um funil: iniciam-se com apontamentos genéricos, mais amplos, que vão se afunilando em torno de conceitos mais específicos. A própria estrutura do livro, que começa falando de temas mais universais ao sertanejo, como a formação geográfica da região (A Terra), passando pelos seus habitantes (O Homem) até desembocar no conflito de Canudos (A Luta), que é a figura central do livro, é o maior símbolo dessa preocupação. Aliada a este viés acadêmico, é importante ressaltar que Euclides da Cunha, como jornalista do jornal A Província de São Paulo (atualmente O Estado de São Paulo), esteve cobrindo in loco parte dos últimos desenlaces da guerra; assim, ele evidencia também seu lado jornalista, construindo sua narrativa com propriedade (algo que o jornalismo atual esqueceu-se ou abandonou...) e mostrando a repercussão do conflito nas metrópoles.
Euclides da Cunha era um republicano, e como tal, condena de forma veemente os sertanejos que se uniram em torno de Antonio Conselheiro, cujo misticismo pregava (será?) o fim dos tempos com a República e a total cisão que ela promovia entre Estado e Igreja. A Guerra de Canudos teve como rótulo majoritário o de levante e rebelião ao regime republicano, que nos seus primeiros anos enfrentou sérias revoltas, como a Revolução Federalista (1893-1895) ocorrida no Sul do país e a Revolta da Armada (1891 e 1893-1894) organizada por marinheiros no Rio de Janeiro (ambos os levantes mencionados n'Os Sertões). Esta crença inicial do autor preambula aquele que é o grande baluarte do livro: a mudança de tom e interpretação em torno da guerra. Sutilmente, Euclides vai relativizando sua posição inicial: os tais rebeldes não eram realmente rebeldes, ou bárbaros, ou animais... Eram uma massa da população brasileira absolutamente esquecida pelas riquezas e alta sociedade das grandes cidades da época.
Essa descoberta por parte de Euclides da Cunha traduz a relevância d'Os Sertões para a literatura brasileira: seu relato desnuda aos ditos "letrados" e "seres superiores" do Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo (as grandes cidades brasileiras da época) a amplitude da nação brasileira, seus problemas, desmandos, contradições e desigualdades. Os Sertões foi a primeira obra brasileira não ficcional que fugiu da "bolha" dos grandes livros românticos e realistas, que tão bem incrustados estavam na mente das pessoas com mais acesso a este tipo de cultura. Nenhum livro, até então, merecia tanto o rótulo de BRASILEIRO, trazendo consigo todas as complexidades que esse adjetivo pátrio possui consigo. Antonio Conselheiro não era um terrorista, amante do Império: provavelmente ele e seus asseclas nem sabiam de boa parte da história do Brasil para formarem um grupo doutrinador que visava derrubar a república. Suas atitudes, contudo, não revelam uma simples e pura inocência, mas devem ser contextualizadas numa atmosfera de mais de três séculos de abandono que essa população enfrentava.
Muita coisa ainda poderia ser dita aqui, tamanho o impacto que a leitura causa. Os Sertões é um livro longo, por vezes árido, mas essencialmente histórico, um símbolo do compromisso com a verdade que o jornalismo deve (ria) assumir. Alguns dos seus apontamentos científicos caíram em descrédito atualmente, mas aquilo que a obra representa e significa jamais será abalado. Ao expor o interior do Brasil, que combina mazelas e desigualdades sociais crônicas com paisagens lindas e gente honesta e trabalhadora, a obra-prima de Euclides da Cunha atinge um nível de importância literária e jornalística para o Brasil que provavelmente jamais será ao menos igualado.