Alana Homrich 12/01/2015
"(...) Quanto a mim, não tinha nada para mostrar. Meus ferimentos foram entalhados diretamente no coração."
Esta é a história de um casaco. Não, de um menino. Melhor, de uma guerra e seus resquícios. Vou explicar certinho: tudo começou no início de março de 1938, um ano no qual os judeus ainda podiam circular livremente por Varsóvia; o avô de Mika tinha acabado de ser promovido para professor universitário e, como comemoração, fez um casaco sob medida pra si. Quando a guerra atingiu Varsóvia e os alemães conquistaram a cidade, este casaco mostrou ter mais importância para a família de Mika do que pensavam. Com o tempo, os judeus foram perdendo seu espaço e não tendo mais direito a possuir suas lembranças, então o avô de Mika construiu bolsos internos no seu casaco para preservar coisas importantes como livros, fotografias, etc.
“Meu avô acrescentava bolsos e mais bolsos ao sobretudo. Certo dia, ele pensou em criar bolsos menores dentro dos maiores. Assim, mesmo que um bolso fosse revistado, eles não encontrariam aquelas camadas extras. Aos poucos, aquele casaco se tornou um imenso labirinto: este bolso era conectado com aquele, mas não com este aqui; aqui havia uma rota sem saída, e este outro levava da esquerda para a direita.”
Após a morte de seu avô, Mika herdou o casaco e, com ele, as lembranças. Em um bolso interno, começou a descobrir o mundo maravilhoso dos fantoches. Lá ele encontrou uma cabeça de papel machê com cabelos louros e lábios vermelhos e na despensa de sua casa, o local secreto do Vovô, encontrou mais fantoches, estes já prontos para a ação. Enquanto a situação para os judeus piorava, as doenças chegando e a esperança desaparecendo, Mika se envolveu cada vez mais com estes fantoches e trouxe um pouco de alegria para o gueto -local onde os judeus moravam- com o seu teatro. É claro que não é possível esquecer a guerra, mas afastar as mentes das crianças da situação terrível que estavam passando, ao menos por um tempinho, já era algo.
“A companhia dos fantoches nos ajudava a esquecer o mundo adulto por alguns momentos. Um mundo onde as pessoas criavam coisas feias, como um gueto para judeus. Um mundo que não conseguíamos entender.”
Em pouco tempo, todo o gueto já conhecia Mika, o menino dos fantoches, porém ele é abordado por um oficial alemão quando vai assistir a um concerto no gueto e sua vida é transformada para sempre.
Eu gosto muito de livros sobre a segunda guerra mundial, já li vários e esse conseguiu me surpreender. Mika é uma personagem fascinante, com os anseios de um garoto da idade, mas que, por causa da situação, vai se transformando rapidamente em um homem e sua inocência dá lugar à sede de vingança. Apesar de retratar um intervalo da história que foi difícil e cruel, a autora conseguiu escrever com a simplicidade e sutileza necessárias para que fosse uma leitura agradável e gostosa.
"Conheci uma boa quantidade de homens e mulheres que, depois de uma noite de bebedeira, de maneira tímida ou com uma expressão ardente nos olhos, expunham um número azul tatuado em seus braços. Quanto a mim, não tinha nada para mostrar. Meus ferimentos foram entalhados diretamente no coração."
Além de Mika, várias outras personagens (que em uma primeira leitura considerei secundárias) também são interessantes e enriquecem este livro. Na verdade, percebi que Mika não é o protagonista desta história: é a guerra. O menino dos fantoches de Varsóvia aborda o antes, durante e depois de um período devastador e cruel, e transcende muitos livros do gênero, pois detalha as marcas que ficam não somente para as vítimas das potências do Eixo, mas também as que assombram os soldados da Alemanha (e os alemães em geral).
Não vou detalhar muito da história, pois o interessante deste tipo de leitura é degustar vagarosamente cada parágrafo que é lido e se surpreender com as informações que ali estão contidas. O livro é uma ficção, mas, além da imaginação da autora, lemos sobre sentimentos muito verdadeiros, e lugares também. O gueto, Treblinka, o levante, os monumentos... tudo é tão real quanto eu e você.
Um dos meus favoritos.