Ladyce 22/07/2019
"Limonov", de Emmanuel Carrère, foi best-seller na França e recipiente do Prêmio Renaudot da Língua Francesa e do Prix des Prix, em 2011. Traduzido por André Telles e publicado pela Alfaguara em 2013, não fez marolas por aqui, até ser indicado por Marcelo Rubens Paiva para uma editora que publica livros por assinatura em 2017. Não é leitura fácil, em parte porque o biografado, Eduard Limonov, é uma pessoa desprezível, canalha, ordinário e sem-vergonha. Mas que descrito pelo autor parece uma pessoa fascinante. "Limonov não é um personagem de ficção. Ele existe. Eu o conheço. Ele foi delinquente na Ucrânia, ídolo do underground soviético; mendigo, depois mordomo de um bilionário em Manhattan; escritor da moda em Paris, soldado perdido nas guerras dos Balcãs e agora no imenso caos do pós comunismo na Rússia, velho chefe carismático de um partido de jovens desesperados..." Com essa introdução por Carrère é natural que se espere mais de Eduard Limonov do que o repelente marginal, personalidade secundária, um ser asqueroso, cuja vida seguimos em grande detalhe.
"Limonov" é descrito como biografia. Mas premiado como romance. Como? Por que? Em parte porque Carrère só entrevistou Eduard Limonov uma vez por duas semanas e a esta altura com o livro quase pronto. Por outro lado, porque a vida do biografado e a do biógrafo se intercalam e aos poucos descobrimos a paixão, ou até mesmo a inveja de Carrère, não pelo homem Limonov, (Carrère para de escrever o livro por mais ou menos um ano, duvidando da própria razão deste trabalho) mas pela sedução que a vida de aventuras de seu biografado parece ter acendido. Passei, então, a ver o livro não como uma biografia, mas como um interlóquio entre o escritor e Limonov.
São dois homens que pararam emocionalmente na adolescência. Basta dizer que para ambos os livros que mais marcaram suas vidas foram os de aventuras de Alexandre Dumas e obras do americano Jack London. Eduard Limonov (né Eduard Savenko) nasceu na Ucrânia (portanto cidadão de segunda classe na hierarquia soviética) e passou a vida como rebelde. Pobre, sem respeito por mãe ou pai, Limonov se rebela contra o status quo de qualquer situação. Seu verdadeiro objetivo é ser do contra. Mesmo quando o que advoga, por anos, acontece, ele rapidamente muda de posição e torna-se um insurgente, um do contra, já que o que defendia tornou-se norma. Revolta, seu nome é Limonov. E sua maneira de revoltar-se não passa de grandes gestos juvenis, sem esteio ou fundamento. Tanto que no frigir dos ovos Limonov não consegue nada, não passa de um energúmeno, machista, inepto e idiota.
Emmanuel Carrère, por outro lado, desfrutou de uma família bem estruturada: pai executivo, mãe historiadora e professora universitária. Cresceu e continuou como adulto a se beneficiar das benesses da vida burguesa parisiense. Não se revoltou contra o estabelecimento. É o verdadeiro oposto de Limonov. E, ainda que pudesse ter interesse intelectual sobre os revolucionários russos, a mim, escapa a fascinação do autor por um membro tão desnorteado da cosmografia russa. Não posso deixar de pensar numa pequena revolta contra sua própria mãe, especialista em história russa. Será que Carrère, deveria ter dedicado tanto de seu tempo e indústria construindo um altar ao anti-herói? Talvez sua mãe, se assim quisesse, pudesse nos dar valor mais acertado do verdadeiro papel de Limonov na resistência, se relevante, contra a abertura do sistema soviético do final do século XX. E ainda, a fascinação com o "revolucionário" lembra-me defensores do comunismo severo, do stalinismo ou seguidores de Trotsky, que, aqui no ocidente, dormindo em camas macias com lençóis de seda, dirigindo carros do ano, comendo e bebendo á vontade, abrigando-se em belas e espaçosas casas, continuam achando que uma revolução ou um sistema semelhante ao que se estabeleceu na antiga URSS seria a solução para as desigualdades no mundo. É uma visão idealista, sem qualquer pé na realidade e primária. E, nós mesmos, leitores de "Limonov" testemunhamos a falácia do sistema através da própria narrativa de Carrère.
Há duas grandes qualidades nesta obra. A primeira é a habilidade de Carrère de nos manter atentos ao texto, de tal modo que mesmo execrando as ações de Eduard Limonov, o que nos é contado, de maneira muitas vezes rude ou crua, nos faz continuar página após página a seguir o fanático e imbecil personagem que o autor nos impôs. A segunda qualidade é o retrato da Rússia sob o governo comunista e sob a abertura iniciada por Gorbachev e da Rússia que conhecemos hoje, a Rússia de Putin, que mais do que nunca aparece como cidadão bastante perigoso. Poucas vezes temos a oportunidade de ler uma obra que nos traz ações tão contemporâneas, referências a momentos históricos que vimos na televisão ou lemos nos jornais. Essa parte política, tenho certeza, foi de grande valia para que o livro se tornasse best seller na França. Para os franceses o que acontece em Moscou é de grande importância. Eles estão muito próximos, apesar dos diversos países que os separam: Bélgica, Alemanha, Polônia, Bielorrússia. A título de curiosidade procurei a distância entre Paris e Moscou. É um pouco mais de 2.800 km. Colocando em nossos termos é menor do que a distância entre Porto Alegre e Palmas, esta é superior a 2.900 km. Assim, tudo que acontece na Rússia é de muito maior interesse para os franceses do que para nós, aqui em outro continente separados por mar e terra imensos.
Não sei para quem devo recomendar este livro. Li. Não gostei. Mas apreciei as informações que me foram dadas. E apreciei a habilidade de Carrère. Mas de cinco estrelas, três estão de bom tamanho.