camila1758 22/05/2024
A Metamorfose
Os estados de sufocação que experimentou Gregor no seu outro corpo, escondendo-se para não assustar a espécie humana, mesmo que frágil e inofensivo se sentisse ?ele mesmo?, são hoje estados cada vez mais cotidianos em nossas vidas. Como se já não respirássemos todos o mesmo ar. E do que sufocamos? Sufocamos quando tudo o que parece nos incluir, nos ?globalizar?, nos unir acaba por nos apartar, separar, expulsar, impedir. Sufocamos quando não cantamos mais juntos. Quando não dançamos mais juntos. Quando não falamos mais juntos. Quando odiamos uns aos outros e não odiamos juntos o que nos aflige. Quando continuamos sem poder dizer verdadeiramente o que nos sufoca, sufocamos.
Num tempo onde inventar falsidades torna-se o modo de produzir verdades, qual seria essa outra saída que, de fato, nos restituísse uma capacidade para dizer de verdade? Há algo estranhamente verdadeiro nas marcas que trans-formam os corpos. Há algo de extremamente delicado e brutal em tudo aquilo que do corpo escapa, goteja, dobra-se, curva-se, se retrai, expande-se. Há algo de extremante verdadeiro em toda metamorfose dos corpos. Há algo de inverossímil, indizível e incontável se juntos olhamos para as memórias traçadas nos corpos do mundo. Incontável porque escapa.
(retirado do livro)