Ãssa 29/05/2024
Água viva
Esse livro é o sentimento que eu não conseguia colocar em palavras que Clarice Lispector deu forma de uma sensação. Ler esse livro foi como despertar algo dentro de mim que estava a muito tempo escondido de tanta sua desesperança de achar o conjunto certo que explicasse o que pensa e sente. Ler esse livro nesse momento me fez muito bem, eu me senti tão feliz lendo, ele é lindo e quanto eu mais eu lia mais eu queria e quando acabou eu fiquei esperando que houvesse uma continuação e fiquei em negação aquilo não podia ser o fim, eu queria mais pois foi como alimentar a alma.
Vou deixar aqui as partes que foram mais marcantes para mim:
Sei como inventar um pensamento. Sinto o alvoroço da novidade. Mas bem sei que o que escrevo é apenas um tom.
Nesse âmago tenho a estranha impressão de que não pertenço ao gênero humano.
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento.
E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural.
E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço.
Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda.
O que não vejo não existe? O que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe. Porque então tenho aos meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade está em alguma parte: mas inútil pensar. Não a descobrirei e no
entanto vivo dela.
Parece-me que pela primeira vez estou sabendo das coisas. A impressão é que só não vou mais até as coisas para não me ultrapassar. Tenho certo medo de mim, não sou de confiança e desconfio do meu falso poder.
Minha aura é de mistério de vida. Eu
me ultrapasso abdicando de meu nome, e então sou o mundo. Sigo a voz do mundo com voz única.
Sou forte mas também destrutiva. O
Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por
favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez os que menos merecem mais
precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim
eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem
farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é
porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro
perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente
o inesperado
Estou transfigurando a realidade ? o que é que está me escapando? por que não estendo a mão e pego? É porque apenas sonhei com o mundo mas jamais o vi.
O que estraga a felicidade é o medo
Que febre: não consigo parar de viver.
Nesta densa selva de palavras que envolve espessamente o que sinto e penso e
vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha e que no entanto fica
inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é:
quem em mim é que está fora até de pensar? Escrevo-te tudo isto pois é um
desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou assombrada pelos meus
fantasmas, pelo que é mítico e fantástico ? a vida é sobrenatural. E eu caminho
em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela
voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar tenho que
me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro
estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.
Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas ? nunca o ato de
entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que
abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar
pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando que se
sabe andar e ? milagre ? se anda.
Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto.
A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas
quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros
entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos
nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em
cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria,
espetaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio
para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de
que te falo.
E eu vivo de lado ? lugar onde a luz central não me cresta. E falo bem
baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir.
E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é
que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha
liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é
perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha
solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e
tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a
dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver.
Para cada um de nós e ? em algum momento perdido na vida ? anuncia-se
uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada:
apenas vivo.
Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.
Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos
poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso
me aniquile, quero a glória de cair. Meu anjo aleijado que se desajeita esquivo,
meu anjo que caiu do céu para o inferno onde vive gozando o mal.
Mas enquanto eu tiver a mim não estarei só.
Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não
pára, viver parece ter sono e não poder dormir ? viver é incômodo. Não se pode
andar nu nem de corpo nem de espírito.