spoiler visualizarHelena.Seribelli 28/12/2020
Vermelho amargo
?E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim.?
?A dor vem de afastadas distâncias, sepultadas tempos, inconvenientes lugares, inseguros futuros.?
?Há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor.?
?A dor do parto é também de quem nasce.?
?Eu desconhecia o amor mesmo fantasiando em me sentir amado.?
?E contrito, mãos amarradas sobre o peito, eu duvidava da fé, mas insistia em crer em Deus Pai, todo-poderoso.?
?Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o refletido me interroga.?
?O espelho é a verdade que, ainda hoje, mais me entorpece. Espelho sustenta o concreto e prefiro a mentira dos sonhos nas manhãs frias e secas.?
?Felicidade era quase uma mentira e, para alcançá-la, só depois de pisar muitas pedras.?
?É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra - basta uma só palavra- é a flecha para sangrar o abstrato morto. Há contudo, dores que a palavra não esgota ao dizê-las.?
?Que a vida não tinha cura, o tempo me ensinou, e mais tarde.?
?Impossível para uma criança viver a lucidez da ferida que se abre ao nascer, e não há bálsamo capaz de cicatrizá-la vida afora. Nascer é abrir-se em feridas.?
?O livro aberto era seu berço e seu barco, em suas páginas ela se transmutava. Eu suspeitava que o embaraço das letras amarrava segredos que só o coração decifra. Mas uma certeza me vigiava: ler era meu único sonho viável.?
?Quando se ama, em cada dia o morto nasce mais. Em tudo, sua ausência estava presente.?
?Passarinho não canta, passarinho lastima - minha irmã repetia. Diante da demasiada liberdade seu canto vira pranto - ela teimava. Liberdade, quando abusiva, mais amedronta - ela completava.?
?O medo interrompe a liberdade, mesmo no coração dos pássaros.?
?Sempre sou um outro morando em mim.?
?Eu amava, ou melhor, por inteiro, eu só era amor.?
?A felicidade se escondia no porão da casa, e cabia a mim visitá-la.?
?O amor, ao anunciar-se, assustou-me. Invadiu-me de repente, sem pedir licença ou por favor. E naquele tempo se usava pedir desculpas para ser feliz. A felicidade nos era interditada. Toda tristeza prenunciava uma felicidade que não chegava.?
?Na rosa, a vida é breve, e, nas feridas, a vida é longa. Melhor deixá-la murchar em seu ramo e apreciá-la à distância. Continuamente, eu sofria pelo medo de sofrer.?
?Mentir a si mesmo é uma fórmula para aliviar-se.?
?Impossível deitar-me em meu próprio colo e acalentar-me. Não suportaria o peso de minha carga.?
?O essencial manifestou-se como fraterno ao silêncio. Guardei-me em gratidão.?
?Exige-se longo tempo e paciência para enterrar uma ausência. Aquele que se foi ocupa todos os vazios. Como água, também a ausência não permite vácuo. Ela se instala mesmo entre as pausas das palavras. Na morte a ausência ganha mais presença. É substantivo e concreto tudo aquilo que permanece.?
?Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem
Comprar bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco - da segunda classe - sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino.?
?No princípio, eu guardava meu verbo amar debaixo de muita gramática. Se por prudência, também pelo medo de desbotá-lo ao deixá-lo vir a luz. Sempre vi a palavra penumbra como a claridade suficiente para proteger o amor.?
?E escrevia, por isso, pesava, - suspeitei. Escrever é também pensar, eu desconfiava.?
?O medo da solidão pode nos tornar acessíveis, recomendava a mãe. Impor-se atento diante da solidão é questão de prudência.?
?Há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo.?
?Meu real é mais absurdo que minha fantasia. O presente é a soma de nostalgias, agora irremediáveis. A memória suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente.?
?Ao transbordar a vida se faz lágrima e rola salgando o passado morto, mudo, que dorme no canto da boca. Não há condimento capaz de temperar o futuro. Só se salga a carne morta. O depois não tem pressa e chega em seu tempo, seco e frio. O pranto acontecia pela intensidade dos porquês. Não há merecimento ao sofrer por falta de explicação.?
?Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentidos a tudo. Dar sentido é tomar posso dos predicados. Trabalho incessante, este de nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência. Dar nome ao real que mora escondido na fantasia é clarear o obscuro.?
?Eu pedalava pelas ruas buscando encontra-me em cada fim de estrada, no depois da ultima saudade, na outra margem do rio. Mas também lá eu não estava.?
?Nunca soube por que as lágrimas se negam a serem doces quando convocadas pela alegria. Sempre chorei salgado, talvez pelo peso da carne morta.?
?Sua ausência ocupou os labirintos por onde eu me procurava e me perdoa em meus próprios traços. Mesmo em vão, jamais interditei os prenúncios do meu amor.?
?A culpa é relativa ao tamanho da memória. Esquecer é desexistir, é não ter havido.?