Carla.Parreira 10/04/2024
O egípcio (Mika Waltari)...
Escrito em 1945, o livro narra a fascinante jornada de um médico egípcio que, abandonado quando criança, foi acolhido por pais adotivos. Mika Waltari, ao compor o personagem central de seu romance, encontrou inspiração em uma das obras mais populares da literatura do Antigo Egito, intitulada "Aventuras de Sinuhe". Essa obra retrata a vida de Sinuhe, um funcionário da corte que teria vivido durante a XII Dinastia, e seus relatos de viagens fornecem a mais antiga descrição conhecida sobre a Síria-Palestina.
No entanto, tanto o romance quanto o filme adaptado dele transferem a trama para a XVIII Dinastia, mais especificamente para a época do Faraó Amenhotep IV. A história de Sinuhe é contada em forma de flashback, começando com sua infância, quando ele foi encontrado em um cesto à deriva nas águas do Nilo e adotado por um médico pobre chamado Senmut. Seguindo os passos de seu pai adotivo, Sinuhe também se torna um médico habilidoso.
Anos mais tarde, Sinuhe tem a oportunidade de sua vida. Junto com seu amigo atlético Horemheb, ele salva a vida de um homem solitário que estava adorando o sol e sendo atacado por um leão. Esse homem é nada menos que o recém-entronizado faraó do Egito, Amenhotep IV. O fato de terem tocado o corpo do "deus-vivo" poderia resultar na morte para os dois amigos, mas, surpreendentemente, eles são recompensados pelo monarca agradecido. Sinuhe se torna o médico da corte e Horemheb se torna um oficial dos exércitos reais.
É durante sua vida luxuosa no palácio que Sinuhe conhece Nefer, uma cortesã ardilosa e luxuriosa que gosta de ser chamada de "Nefer-Nefer-Nefer" (três vezes bela). Nefer é capaz de inspirar ardentes e desastrosas paixões nos homens que a seduz. Para ter algumas poucas horas de prazer ao lado de Nefer, Sinuhe se humilha, mendiga e gasta todos os bens que possui, incluindo a sepultura de seus pais, que é essencial para garantir a entrada deles na eternidade. Ele negligencia seus deveres médicos e acaba perdendo tudo, encontrando-se na sarjeta sem nada para oferecer à cortesã.
Sinuhe deixa o Egito e passa anos vagando por terras estrangeiras, onde seu talento como médico é reconhecido e ele adquire valiosas experiências de diferentes culturas. Essa parte de sua vida no exterior, inclusive em terras como a Síria-Palestina, é a maior parte do romance de Waltari. No entanto, no filme adaptado por Curtis, essa parte da história é apenas brevemente retratada.
Ao retornar à sua pátria natal, Sinuhe enfrenta o Egito em profundo estado de Guerra Civil. O faraó Amenhotep IV, que agora adota o nome de Akhenaton, instaura uma revolução religiosa no país, promovendo o culto monoteísta dedicado à adoração do "disco solar" (Aton) e decretando a ilegalidade de todos os demais deuses. O médico perde a amada esposa, Merit, e seu filho, Toth, e vive seus últimos dias em uma ilha remota, exilado sob a ordem de seu antigo amigo, Horemheb, que se ergue como rei e abafa a iniciativa monoteísta.
O livro interliga fatos históricos e fictícios, traçando um tapete de realidade e invenção. Por exemplo, a sucessão dos faraós é retratada conforme a história, mas a saga do protagonista é um capítulo de ficção.
Melhores trechos: "...Quando fiz sete anos ganhei uma tanga de menino e minha mãe me levou ao templo para assistir a um sacrifício. O templo de Ammon em Tebas era naquele tempo o mais grandioso do Egito. Uma avenida ladeada por esfinges com cara de carneiro e esculpidas em pedra levava ao templo, diretamente, defronte do templo e do lago da deusa Lua. A área do templo era cercada por muralhas maciças e com os seus muitos edifícios formava uma cidade dentro da própria cidade. Do alto dos pilonos, em torre flutuavam galhardetes, e gigantescas estátuas de reis guardavam as portas de cobre de cada lado do recinto. Atravessamos os portões e os vendedores de Livros da Morte puxavam minha mãe pelas roupas e faziam suas ofertas em tom áspero ou sussurrante. Minha mãe me levou a ver as lojas de carpintaria abarrotadas de imagens de madeira de escravos e servos que, depois de consagradas pelos sacerdotes, serviriam para os seus possuidores no outro mundo a ponto destes nem precisarem erguer um dedo para obter qualquer coisa. Minha mãe pagou a espórtula erigida aos espectadores, e eu vi sacerdotes em trajes brancos e de mãos gentis matarem e esquartejarem um touro entre cujos chifres um rolo de papiro trazia um selo testificando que o animal não tinha a menor mácula e nem um único pelo preto. Os sacerdotes eram nédios e santos, e suas cabeças raspadas luziam untadas de óleo. Havia cem ou mais pessoas para assistir ao sacrifício, mas os sacerdotes não prestavam a menor atenção a essa gente e conversavam livremente entre si, durante a cerimônia, tratando de seus negócios. Observei as pinturas de assuntos guerreiros nas paredes do templo e me maravilhei com as gigantescas colunas, não atinando absolutamente com o motivo da emoção de minha mãe quando ela, com os olhos cheios de lágrimas, me levou de volta para casa. Lá, me tirou os sapatos de criança e me deu as sandálias novas que eram incomodas e que magoavam meus pés enquanto não me habituei com elas... Éramos vinte e cinco, entre jovens e meninos; apresentamo-nos para ser recebidos no templo. Depois que nos banhamos no lago do templo, nossas cabeças foram raspadas e vestimos trajes grosseiros. O sacerdote designado para nosso diretor não era tão meticulosamente exigente como alguns outros. A tradição obrigava a sujeitar-nos a toda sorte de cerimônias humilhantes, mas havia entre nós alguns de alta condição social e outros que já tinham passado em exames - homens feitos que entravam a serviço de Ammon apenas para garantir um futuro melhor. Estes trouxeram consigo abundantes provisões e presentearam com vinho muitos dos sacerdotes; alguns chegavam até a sair de noite para casas de divertimentos, já que isso de iniciação para eles não significava nada. Eu me submetia ao regime com grande mágoa, com o espírito cheio de pensamentos amargos, satisfazendo-me com um pedaço de pão e uns púcaro com água - a dieta tradicional dos noviços - aguardando com ânimo discreto e solícito os dias vindouros. Era tão jovem que ainda possuía uma ânsia indizível relativa à fé. Diziam que Ammon aparecia em pessoa durante a iniciação e falava individualmente com cada candidato; ser-me-ia um inefável conforto poder sentir alívio, abstraindo-me de mim e me voltando para qualquer objetivo universal e bem determinado... Na Casa da Vida, que fazia parte do grande templo de Ammon, o ensino era dirigido nominalmente pelos médicos reais, quanto a cada disciplina. Nós, porém, os víamos raramente porque tinham enorme clínica, recebiam valiosos presentes dos ricos e moravam em espaçosas casas fora da cidade. Mas sempre que era recolhido à Casa da Vida algum doente cujos sintomas deixavam embaraçados os médicos habituais, ou se estes não se aventuravam a empreender tais ou quais tratamentos, o médico real vinha ver e tratar o caso e demonstrar sua proficiência diante dos que se estavam especializando em tal setor. Desta forma mesmo o paciente mais pobre podia ter o benefício dos cuidados de um médico real, e isso para a glória de Ammon. O período de prática era longo mesmo para aqueles que dispunham de talento. Tivemos que tomar um curso sobre drogas e poções, aprender nomes e propriedades de ervas, as estações e as horas em que deviam ser colhidas, a maneira de secá-las para fazer os extratos; e isso porque um médico tinha que estar apto a preparar, seus próprios remédios conforme a necessidade. Muitos embirravam não vendo a serventia disso já que bastava uma simples receita para ser obtido o fornecimento pela Casa da Vida de todo e qualquer remédio corretamente pesado e misturado. Tal conhecimento, todavia, me viria a ser de grande proveito, conforme mostrarei mais tarde. Tivemos que aprender os nomes das diferentes partes do corpo, bem como as funções e finalidades de cada órgão humano. Aprendemos a manobrar escalpelos e instrumentos de extração. Acima de tudo, no entanto, tivemos que acostumar nossas mãos a reconhecer a doença tanto através dos orifícios naturais do corpo como ao longo da pele. Observando os olhos, também, tínhamos que depreender a espécie do distúrbio. Habilitamo-nos a partejar uma mulher em trabalho sempre que o serviço das parteiras redundava inútil. Devíamos estimular e aliviar dores conforme o caso requeria. Aprendemos a distinguir as queixas banais das importantes, os distúrbios de origem mental dos de proveniência física. Habituamo-nos a diferenciar a verdade da imaginação na conversa dos doentes, e a fazer perguntas de modo a esclarecer um quadro sintomático. Esse longo período de experiência foi seguido pelo dia em que - após o cerimonial da purificação - vesti um blusão branco e comecei a trabalhar na sala do ambulatório onde aprendi a arrancar dentes das mandíbulas de homens fortes, a fazer curativos, a lancetar inflamações e tumores, a coaptar ossos quebrados. Nada disso era novo para mim. Graças aos ensinamentos de meu pai fiz bons progressos e fui designado instrutor dos meus companheiros... A Cidade dos Mortos era guardada estritamente dia e noite, e impossível me seria encontrar uma tumba sem vigilância onde esconder meus pais a fim de que pudessem sobreviver eternamente em meio às oferendas que eram trazidas para os mortos ricos e ilustres. Levei por isso os corpos deserto adentro, com o sol a queimar minha pele e o percurso a estafar meus membros, até me estatelar, gemendo, certo de que ia morrer. A verdade é que ainda assim consegui transportar a querida carga para além das montanhas, através de atalhos perigosos utilizados apenas por bandidos. Penetrei assim no vale proibido onde jaziam sepultados os faraós... Se as raparigas do templo não eram do agrado do homem, tinha este que tomar uma esposa ou comprar uma escrava. Todos os dias havia leilões de escravas porque os navios não cessavam de entrar no porto trazendo mulheres e crianças de todos os tamanhos e idades e para todos os gostos. Mas as deformadas e inválidas eram vendidas barato para o sacrifício a Baal em proveito do conselho da cidade cujos membros riam e se davam pancadinhas mútuas comentando a esperteza com que iludiam seu deus. Não deixei de oferecer sacrifício a Baal já que se tratava do deus da cidade. A prudência me levava a lhe render preito. Como eu era egípcio não lhe levei oferendas humanas; dei-lhe ouro. Visitava às vezes o templo de Astarté que se abria de tarde; ficava a ouvir música e a contemplar as sacerdotisas - que não chamarei de donzelas - enquanto elas dançavam voluptuosamente para a glória da deusa. Como era costume, eu me deitava com elas, admirando-me das novidades que me ensinavam; e eu consentia sem grande prazer nem interesse, apenas por curiosidade. Depois que me ensinaram suas práticas me saturei e deixei de visitar o templo. A meu ver não havia divertimentos mais monótonos do que os que ali se praticavam... Uma vez escravo eternamente escravo, mesmo quando envolto em lã fina... Assim, Akhnaton pode ser um médico para o coração humano, mas não pode ser ubíquo, estar em toda parte. Há corações tão duros e tenebrosos que nem mesmo a verdade de Akhnaton lhes poderá valer de nada... A rainha Nefertiti voltou à Tebas para o nascimento do seu próximo filho, pois não tinha coragem de ir para a cama dar à luz sem a ajuda dos médicos de Tebas e dos feiticeiros negros. E lá teve a terceira filha, que se chamou Ankhsenaton e que futuramente seria rainha. A fim de facilitar o nascimento os feiticeiros estreitaram e encompridaram a cabeça da criança, conforme já haviam feito com as outras princesas. Quando a menina cresceu, todas as damas da corte e outras mulheres que queriam se manter na moda e imitar os estilos da corte, começaram a usar fundos falsos em suas cabeças. As princesas, porém, conservaram as cabeças raspadas para mostrar o formato elegante de seus crânios. Os artistas também admiravam isso e fizeram muitas esculturas e pinturas das princesas assim, sem suspeitar que tal diferença tão distinta não passava de uma aberração resultante da arte de mágicos. Depois que Nefertiti deu à luz a criança voltou a Akhetaton e fixou residência no palácio que nesse ínterim já se tornara habitável. Deixou as outras mulheres em Tebas, ficando vexada de haver dado nascimento a três filhas, e não querendo que o faraó gastasse a virilidade no leito de outras mulheres. Akhnaton ficou satisfeito com isso, pois estava cansado de ter que cumprir seu dever no harém quando apenas desejava uma única mulher, Nefertiti: e todos quantos contemplaram sua beleza hão de compreender bem tal preferência; mesmo o seu terceiro parto não prejudicou em nada suas perfeições. Parecia mais jovem e mais radiosa do que antes, mas não saberei dizer se essa mudança era conseqüência da nova moradia na cidade de Akhetaton ou feitiçaria dos negros. Assim, num ano só Akhetaton surgiu das brechas e desertos; palmeiras ondulavam garbosamente ao longo de suas esplendidas ruas, romãs amadureciam muito rubras em jardins, e nos lagos coalhados de peixes flutuavam flores de lótus. A cidade inteira era um jardim florido, pois as casas de madeira eram lindas e frágeis como pavilhões, e suas colunas coloridas alegremente com vergas e palmeiras. Os jardins invadiam até as próprias casas, pois as pinturas das paredes representavam palmeiras e sicomoros agitados por brisas de eternas primaveras. Nos assoalhos havia cenas pictóricas de caniços acamados, de peixes multicores nadando e de patos erguendo vôo. Na cidade não faltava nada para rejubilar o coração humano. Gazelas mansas vagueavam pelos jardins enquanto nas ruas as carruagens mais leves eram puxadas por soberbos cavalos adornados com plumas de avestruz. As cozinhas eram olorosas por causa das especiarias trazidas de todas as partes do mundo. Assim a Cidade Celestial foi terminada, e quando o outono voltou e as andorinhas emergiram do barro para dardejar em bandos imensos por cima das águas que já começavam a subir, o faraó Akhnaton consagrou a cidade e a região à divindade Aton. Consagrou as pedras demarcadoras do norte e do sul, do oriente e do ocidente, e em cada um desses marcos havia a representação de Aton lançando a benção de seus raios sobre o faraó e a sua casa. Inscrições nas pedras recordavam a afirmação do faraó de nunca mais por os pés fora daqueles limites. Para esta cerimônia os operários tiveram que abrir estradas pavimentadas nas quatro direções da região de modo a que o faraó pudesse percorrer os limites em sua carruagem de ouro e a família e os membros da corte o acompanhassem em carros e liteiras. E flores juncavam tal percurso enquanto flautas e instrumentos de corda tocavam em louvor a Aton..."