Leila de Carvalho e Gonçalves 18/06/2022
A
Alice No País Das ?Desmaravilhas?
A paraibana Alice, professora aposentada, é quem narra "Quarenta Dias", romance vencedor e Livro do Ano do Prêmio Jabuti 2015. No formato de um diário, trata-se de um desabafo que começa, quando ela deixa João Pessoa e vai morar a contragosto em Porto Alegre onde sua filha, já casada, está concluindo os estudos. Uma decisão tomada após uma bem armada conspiração familiar cuja missão foi convencê-la a assumir os cuidados de um neto que ainda está para ser concebido, afinal, Norinha não tem tempo para ser mãe em período integral. Entretanto, o convite para uma temporada de estudos em Paris, não só adia a gravidez como faz a candidata a avó ser deixada para trás.
Sua confidente passa a ser uma boneca Barbie estampada na capa do caderno onde Alice escreve com uma linguagem própria, que prima pela criatividade e o linguajar nordestino, seu desabafo. Cada capítulo abre com uma citação de um escritor que complementa o sentido do texto e termina com uma ilustração que aponta para a nova direção da narrativa. Outra característica é a ausência do ponto final em alguns parágrafos, que deixa a ideia em aberto, permitindo diferentes abordagens interpretativas.
"Diga-me, Barbie, você que nasceu pra ser vestida e despida, manipulada, sentada, levantada, embalada, deitada e abandonada à vontade pelos outros, você é feliz assim?, você não tem vergonha?, eu tenho vergonha de ter cedido, estou lhe dizendo, vergonha"
A partir daí, a reação traumática de Alice ao abandono eclipsa o interesse. Com o pretexto de encontrar o paradeiro de um imigrante paraibano para uma mãe sem notícias, ela mergulha num mundo das "desmaravilhas", reportando-se a sua xará, a inglesinha criada por Lewis Carroll que reage contra às regras e à lógica dos adultos. Enfim, desconstruindo-se para poder se reconstruir, a personagem percorre uma inóspita cidade de fio a pavio, de sol a sol, descobrindo como é fácil tornar-se invisível e desaparecer para sempre.
"Eu nem percebi, naquele dia, quando saí atrás de um quase imaginário, um vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio, que ia me levar pra um buraco, outro mundo. Também, que importância tinha? Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só pra cair em algum mundo?"
Valéria Resende, a autora, trata de temas difíceis como a questão identitária, o choque cultural, o conflito de gerações e o processo do perdão, exibindo a violência e a segregação numa cidade moderna e pretensamente cosmopolita. Sem dúvida, esse é um romance perturbador e indigesto que atrai a atenção para o Brasil que vivemos e aquele que estamos construindo.
?Eu descobria que o mundo era feito em grande parte de gente desaparecida, que não deu mais notícias e gente desesperada atrás ou a espera conformadamente pelos sumidos?
Merecido sucesso. Parabéns, Valéria!