fev 24/03/2021A migração e o não pertencimentoEm Quarenta Dias acompanhamos a história de Alice que se muda a contra gosto de João Pessoa para Porto Alegre para ajudar a filha, Norinha, em uma futura maternidade. Maternidade sempre adiada por causa do futuro profissional da filha e seu marido.
Depois de um jantar em que a filha fala sobre viajar depois que a mãe se muda há uma reviravolta na história e Alice passa quarenta dias perambulando pela capital do Rio Grande do Sul como se fosse uma pessoa sem teto. À princípio ela busca por Cícero Araújo um paraibano que a mãe não tem contato há muito tempo e pede para Alice tentar encontrar e informá-la.
Durante as andanças de Alice vamos acompanhado as diferenças culturais existentes em nosso país. Não só pelo sotaque, mas também pelo comportamento e variações linguísticas, regionalismos. Muito dessas andanças se dá pelo fato de Alice se sentir perdida, sem lar e deslocada longe de sua terra. Lá ela se sentia acolhida, era alguém. Não estava vivendo em uma vida transitória. Aliás, essa vida transitória para ser permanente. Quando olhamos os relatos dos personagens que também vieram do Nordeste do país e se encontram com Alice ao longo de sua jornada em busca de Cícero. Esses personagens que mudaram, transitaram em busca de uma nova vida, que foram atrás de melhorar e crescer longe onde nasceram. Eles mudam, mas nem sempre se sentem acolhidos ou pertencentes em esse novo local. Além disso a saudade de tudo permanece.
Grande parte dessa falta de acolhimento é sentido pela xenofobia e racismo dos polacos e outros habitantes da cidade de Porto Alegre tem perante os nordestinos. Maria Valéria Rezende vai demonstrando isso de inúmeras formas, mas a principal é usando o termo ?brasileirinho? para indicar que os nordestinos são diferentes e nem sempre bem-vindos. A branquitude e a xenofobia estão escancaradas. Há uma cena em que Alice tenta contratar uma empregada e uma mulher branca não aceita trabalhar para ela quando percebe de onde ela veio.
Rezende além de discutir sobre os movimentos transitórios dos nordestinos e suas andanças, também aborda a situação dos moradores de rua. O descaso, a união e como eles se viram para se manterem bem ali. Nós vamos descobrindo essas situações a partir dos relatos em que Alice escreve em um caderno da Barbie depois que volta para casa.
Eu acreditei que o livro seria sobre relações familiares, sobre mãe e filha. Mas a guinada da personagem mostrou que seria sobre muito mais. No entanto, fiquei um pouco decepcionado porque não há relatos sobre todos os dias e as poucas lembranças do passado que engrandeceriam a história ficam meio perdidas. O relato sobre o marido que sumiu na ditadura, os pais que morreram cedo. Além disso, o final é corrido porque Alice já se sente satisfeita com a transição, acolhida por Milena, a empregada que também é ?brasileirinha? como ela.
Enfim, é um livro que surpreende com a mudança que toma, mas que infelizmente fica perdido com o final acelerado. Mas o enredo é envolvente. Acredito que valha a pena ler.