Jaqueline 07/11/2014Análise Up! "Enlaçando-se pela cintura, eles formaram um círculo bem ali, no meio da rua, no meio da noite, no meio da Europa.
- Aqui estamos nós - disse Carla, olhando em volta para a família com um largo sorriso estampado no rosto, feliz. - Enfim, juntos de novo. Depois de tanta coisa. - Fez uma pausa e então repetiu: - Depois de tanta coisa" (pg. 1066).
Eternidade por um Fio é o terceiro volume da série O Século, escrita por Ken Follett e publicada no Brasil pela editora Arqueiro. Acompanhando a jornada de famílias de cinco diferentes nacionalidades, seguimos os desdobramentos da Guerra Fria, a disputa militar, tecnológica, econômica, política, ideológica e social (ufa!) entre URSS e Estados Unidos. Antigos conhecidos voltam rapidamente à cena neste livro, mas o tempo é dos jovens!
Com uma pesquisa histórica intensa e a utilização de figuras históricas do quilate de Martin Luther King e João Paulo II, o escritor britânico Ken Follett é bem sucedido em nos apresentar um quadro da complexa e acelerada segunda metade do século XX. O Muro de Berlim, erguido em 1961, é quase um personagem do livro, mantendo separados amantes, sócios, pais e filhos. A centralidade de Dimka Dvorkin o coloca como correspondente direto de tudo o que acontece no Kremlin, o centro político soviético, desde o governo de Nikita Kruschev até o estabelecimento de Mikhail Gorbachev. Cobrindo as zonas de influência do comunismo temos sua irmã gêmea Tanya, que vive perigosamente como correspondente e acredita no fim do regime autoritário que mantém milhares de pessoas aprisionadas em um lado do mundo. Ela se desloca entre Cuba, Londres, Varsóvia e outros tantos lugares cobrindo greves, planos de boicote, prisões irregulares e confrontos. Apesar de seu potencial, acredito que ela foi uma personagem subaproveitada, pois, além de não ter o carisma de sua mãe adotiva, a alemã Carla Franck, seus constantes relacionamentos amorosos com homens destemidos e sua permanente preocupação com um colega de resistência muitas vezes tomaram conta dos seus capítulos, deixando sua pegada heroica em segundo plano.
Protestos e repressão de direitos e liberdades civis são muito bem desenvolvidos no plot de George Jakes, o filho de Jacky Jakes e Greg Peshkov que trabalha no Departamento de Justiça dos Estados Unidos e nos guia através das gestões de seis presidentes, de John Kennedy até George Bush (pai). A luta pelo fim da segregação racial, o foco na política externa, as negociações com o FBI e a manipulação da opinião pública são alguns dos tópicos desenvolvidos em torno desde personagem, testemunha ocular de momentos históricos e conviva de figuras como Martin Luther King, Bob Kennedy e Lyndon Johnson. O clima de paranoia e a crença em uma força militar esmagadora levou pavor e morte a muitas pessoas que apenas queriam seguir suas vidas em paz e com prosperidade. Mais do que uma oposição entre capitalismo e socialismo, compreendemos o papel determinante das pessoas por trás de cada regime, seus impedimentos, alianças, anseios e dilemas.
A covardia e a violência das pessoas em posições de poder muitas vezes chocam e entristecem o leitor, mas acredito que é nesta forte humanização dos personagens, todos eles com defeitos e qualidades verossímeis, que reside a grande força desta trilogia.
A luta pelos direitos civis e pela liberdade política são os pontos focais do livro. Dos Viajantes da Liberdade até o Movimento dos Panteras Negras, passando pela onda do Black is beautiful, a segregação racial nos Estados Unidos ocupa um importante espaço na narrativa de Follett. O epílogo de Eternidade por um Fio, nesse sentido, exemplifica de forma magistral a luta por representatividade e direitos civis no Ocidente.
Com a banda Plum Nellie, formada por Dave Williams e Walli Franck, o irmão da professora Rebecca Hoffman, acompanhamos o mundo do show business e do rock n roll que acalentou o sonho de tantos jovens dos dois lados do Muro. Acredito que este plot poderia ter sido mais bem desenvolvido se o autor focasse mais em contrapor os valores vigentes e com a busca por novidades e rupturas da juventude ocidental. Abro aqui um espaço para pequenas críticas: Evie Williams, a irmã de Dave que segue carreira no teatro e no cinema, passa praticamente em branco quando não está tirando a roupa no palco ou ao lado de seu namorado pop star. A própria Rebecca, uma personagem cheia de potencial, acaba sendo completamente desperdiçada, ficando fora de qualquer grande acontecimento na maior parte do livro. Com mais de cem personagens em uma obra de tamanha ambição, até consigo compreender a superficialidade com que certas discussões são abordadas no livro, ainda que elas continuem sendo polêmicas até o dia de hoje. O discurso de igualdade entre homens e mulheres aparece pontualmente. A luta pela diversidade sexual também ganha espaço no livro, mas de forma mais institucionalizada. Achei extremamente interessante como os homens são sempre aqueles que parecem mais sofrer por amor neste livro, tomando com dificuldade e incredulidade as escolhas de suas parceiras. De modo geral, acho que temas como imigração, sexo livre, divórcio, drogas, aborto e papeis sexuais poderiam ser aprofundados, mas compreendo a limitação do autor tanto pelo prazo de publicação do livro como pela quantidade de páginas que ele poderia acrescentar à obra afinal de contas, estamos falando de um calhamaço de quase mil e cem páginas!
Seguindo Jasper Murray, jornalista britânico que sonha em se estabelecer nos Estados Unidos, vamos até a covarde e sangrenta Guerra do Vietnã, que é retratada em apenas um capítulo do livro. Mesmo achando este espaço ínfimo, conseguimos ter uma pequena amostra das monstruosidades e do horror deflagrado pelas guerras. De certo modo, o foco do livro está nos bastidores do poder, e não necessariamente no campo de guerra. A Crise dos Mísseis de Cuba e a emergência do Oriente Médio no contexto global são temas bem trabalhados na história, rendendo boas viradas e tensão à trama. Porém, eventos importantes como a Guerra da Coreia e as ditaduras militares da América Latina, apoiadas pelo capital norte-americano, passaram em branco no livro.
Cam Dewar assume o papel de vilão neste volume, ainda que suas maldades não cheguem nem perto daquelas executadas pelos bad guys anteriores. Algo de que eu senti muita falta neste último volume da série foi a força contagiante de personagens magnificamente corajosos como Lloyd Williams, Eth Leckwith e Maud Von Ulrich, que aparecem pouquinho no livro. Até mesmo aqueles personagens que amamos odiar, como o conde Fitzherbert e Lev Peshkov, mexem com o leitor que acompanha a série desde o começo. É muito difícil dizer adeus a personagens que amamos, e isso acontece pontualmente neste livro. O primeiro livro da série, Queda de Gigantes, continua sendo o mais sensacional e cativante de toda a trilogia, em minha opinião.
Eternidade por um fio é o desfecho de um trabalho grandioso e cativante executado com maestria pelo escritor Ken Follett. Ainda que eu não tenha sentido a mesma força emocional dos livros predecessores neste volume, reconheço o empenho do autor, que se dispôs a escrever sobre os conflitos, rupturas e continuidades de todo o século XX em uma única trilogia. Vale a pena ler.
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