murilo 04/03/2011
Nunca escondi de ninguém que a literatura inglesa é uma das minhas favoritas. Ela foi o berço de alguns dos meus mais estimados escritores e de livros que são os melhores que já li na minha vida. Entre os escritores ingleses que mais gosto está um romancista de origem humilde, que se serviu de seu talento para mudar de vida. Não conseguiu apenas isso (ficou rico), como se transformou no maior nome literário de sua época, lido e admirado por quase todos os seus conterrâneos. Das crianças aos idosos, dos analfabetos aos mais instruídos (era comum uma pessoa ler em voz alta para seus parentes), do mais humilde trabalhador até à rainha da Inglaterra. Firmou seu nome e o de seus personagens no imaginário coletivo para todo o resto da eternidade: Charles Dickens. Até mesmo quem nunca o leu já ouviu falar de seus personagens mais famosos. Scrooge, Oliver Twist, David Copperfield.
Em um tempo em que a Revolução Industrial penetrava na vida dos ingleses, a distância entre a capital e o interior diminuía cada vez mais com a crescente construção de ferrovias por todo o país, a baixa do analfabetismo praticamente para zero, as pessoas liam inúmeros jornais. Estes, numa época em que não existia rádio e muito menos televisão, eram os únicos meios de informação para a população. Eram muitos, a concorrência enorme, e eles precisavam vender bem para se manter em publicação. A solução encontrada por muitos deles foi o romance-folhetim, uma história publicada em capítulos semanais ou mensais que fosse capaz de prender os leitores com uma boa história, cheia de mistérios, romance, reviravoltas e pontos altos do enredo que ficavam sempre para o próximo capítulo. Enquanto os livros eram extremamente caros, verdadeiros artigos de luxo os jornais eram baratos. As mais pobres famílias podiam se reunir em volta da fogueira para descobrir o que ia acontecer com seus queridos personagens. Dentre todos os ingleses que se enveredaram por essa área, Dickens foi um verdadeiro mestre. Suas obras viravam sucesso nacional e conversas em rodas de amigos.
Em 1861, Dickens já era a figura literária viva de maior prestígio da Inglaterra e tinha publicado muitos dos seus mais consagrados livros. Entre estes, Um Conto de Natal, uma das difundidas histórias da literatura e uma das poucas histórias de Natal que vale a pena acompanhar, seja em quadrinhos, filme ou em desenho animado. Mas foi nesse ano que ele lançou o livro que muitos consideram como sendo o seu melhor, Grandes Esperanças.
Pip é um pequeno órfão que foi criado por sua irmã e seu cunhado ferreiro José. Um dia, ao ser chamado para ir à casa de senhorita Havisham, a pessoa mais rica da cidade, sua vida muda por completo. Lá conhece Estela, a filha adotiva de senhorita Havisham. Ela era a garota mais bela que seus olhos já haviam visto. E também a mais fria, orgulhosa e cruel. Nenhum momento com ela lhe trazia felicidade. Ela apenas lacerava seu coração, o fazia se sentir o mais desgraçado dos homens. Não havia dia em que não se achasse grosseiro, rude, vergonhoso de suas roupas gastas e da sua humilde casa. Um minuto com Estela era um minuto de sofrimento, mas como ele ansiava por ele! Sua única chance de ficar com ela era se tornando um cavalheiro de avultados bens. Logo ele, um mero aprendiz de ferreiro. Então, sem sombra de aviso, ele se torna herdeiro de uma pessoa de grande fortuna que prefere que Pip não tome conhecimento de seu nome. Logo Pip parte para Londres para se tornar um verdadeiro cavalheiro e assim poder se casar com Estela.
Grandes Esperanças guarda algumas semelhanças com as obras anteriores de Dickens. O jovem órfão, a representação dos defeitos do sistema judiciário, as críticas moderadas ao Sistema Capitalista (Dickens não poderia, nem se quisesse, criticar duramente um sistema que o fez ascender tanto socialmente). Quando Dickens começou a publicar os seus romances Londres tinha mais de um milhão e meio de habitantes, devido à explosão demográfica e a um êxodo rural que expulsava os camponeses. A indústria têxtil serviria de emprego para estes espoliados. O trabalho infantil torna-se uma das características mais pungentes da economia inglesa. Dickens explora estes problemas, mas nunca assumindo a posição de revolucionário. Seus personagens conseguem melhorar de vida, como Pip, mas nunca devem à justiça social, e sim a meros acasos.
Mas essas pequenas críticas são apenas pequenas camadas dentro de Grandes Esperanças. Um das principais causas do sucesso de Dickens, se não a maior, está apenas em uma coisa: seus personagens. Ele sabia mais do que ninguém que o primeiro passo de uma boa história é ter bons personagens. Criador de tipos únicos, ele deu a vida a muitos dos personagens marcantes da literatura. Pio não deixa nada a dever a Scrooge, Oliver Twist e outros personagens seus de sucesso. Ele não é o típico protagonista perfeito. Comete erros, vê assim como uma pessoa de má índole e gasta seu dinheiro desmedidamente. Acumula cada vez mais dívidas enquanto arrasta seu melhor amigo, sem querer, para o fundo do poço financeiro. Os outros nomes da história não ficam atrás. A mera presença de Estela já enregela os leitores com seu coração de pedra. Sabemos que ela não tem culpa de ser assim, que é culpa da educação que recebeu, mas nunca sabemos o que ela realmente pensa da idéia de atrair os homens com sua beleza apenas para feri-los com seu desprezo. José é como um eterno garoto que não perde sua inocência mesmo depois de adulto. É em toda a sua ignorância o mais sábio e nobre dos homens, incapaz de se queixar de alguma coisa. Não vou ficar aqui falando de cada personagem, mas todos são únicos. Eles têm seus próprios cacoetes e bordões, defeitos e momentos ridículos. Em alguns momentos fica até difícil acreditar que Dickens não se inspirou em nenhuma pessoa real, tendo principalmente como base para seu trabalho sua inesgotável criatividade.
A linguagem de Dickens é rebuscada e cheia de um humor leve e próprio. Nada que te faça rir às gargalhadas, apenas um sorriso no canto da boca. Na mesma medida é a sua capacidade de provocar outras emoções nos leitores. Tudo é comedido, Dickens escreve como um cavalheiro que nos oferece uma taça de vinho enquanto nos conta a sua história. A narrativa em primeira pessoa de Pio nos torna seus mais íntimos amigos, dispostos a provar cada angústia, medo e sofrimento pelo qual ele também passa.
Para os dias de hoje, Grandes Esperanças pode ser considerado um romance dotado. É claro que isso é mais do que natural para qualquer clássico, ainda mais para um romance com quase 150 anos. As coincidências improváveis, as reviravoltas atrás de reviravoltas, que serviam pra manter acesa a chama do interesse dos leitores e movimentar as obras não só de Dickens, mas de Alexandre Dumas e tantos outros. O objetivo de Charles Dickens não era alcançar o realismo, era o entretenimento. Pretendia, de certa forma, recuperar o espírito do romance gótico e das novelas picarescas que lia na sua juventude. Além disso, sempre que escrevia uma história mais verossímil a recepção do público era fria, indiferente. A própria vida do autor parecia irreal. Um garoto pobre, com o pai preso mais de uma vez por dívidas, que se tornava rico.
Dickens consegue ser, até hoje, um dos autores ingleses mais lidos do país. Ele já teve quase duzentas adaptações para o cinema e centenas no teatro. A língua inglesa ganhou alguns neologismos à sua conta. Gamp é um termo usado na gíria para "guarda-chuva", devido a uma personagem, Mrs Gamp. Pickwickiano, Pecksniffiano, podem ser usadas para se referir ao mesmo tipo de pessoa que as personagens referidas. Tamanha aceitação e fama de Dickens vieram de um misto de talento e trabalho, e mais trabalho árduo. Ele reescrevia diversas vezes o mesmo capítulo, mesmo que estivesse com os prazos praticamente estourando à sua frente. Suas histórias duravam anos sem que se esquecesse de um único detalhe do enredo. Por mais mistérios que incluísse em suas tramas sempre dava um jeito de resolver todos, sem deixar uma única ponta solta. E ainda contava com duas grandes vantagens sobre os leitores. Primeiro, poderia saber a opinião do público antes de terminar a obra. Segundo, seus leitores não poderiam trapacear dando uma espiada no último capítulo para saber logo o que vai acontecer no final. Tinham que esperar pelo final como todo mundo.
O perfeccionismo de Dickens se fazia ainda maior quando os capítulos iam ser reunidos em um só volume, que variava entre 400 e 800 páginas. Ele revia tudo antes de lançar. Cada página, cada linha, cada palavra. Fazendo pequenas alterações, melhorias que não seriam notadas por muitos leitores. Sem todo esse esmero provavelmente ele não seria metade do que foi. Chegou a ganhar até a honra de ser enterrado ao lado de William Shakespeare.
Mas talvez a grande razão do sucesso de Dickens esteja no fato de que ele não escrevia apenas para buscar reconhecimento, dinheiro e fama. Seu principal e grande objetivo era o de todo bom escritor, independente de origem e época: Escrever uma boa história. E isso, Dickens pode se orgulhar de ter feito.