Nika 21/01/2014Pip e nossa época de Grandes EsperançasNão se mede um livro pelo tempo que se leva para lê-lo. O tempo dos livros é uma coisa única, intransferível; envolve o leitor da mesma forma que um relacionamento a um amante. Em alguns casos é arroubo, em outros, amor secreto. Eu costumo ter brigas e nunca mais com alguns livros; depois, sinto saudade, banco a mulher de malandro e volto. Outras vezes, eu preciso de distância, de respiro, e também daquela melancolia que as dores profundas, dos amores insondáveis, causam.
Foram seis meses para completar a releitura de Grandes Esperanças, de Charles Dickens. A edição da Companhia das Letras/Penguin está excelente. A tradução do Paulo Henrique Brito é rica, encantadora e especialmente hábil nas construções das variantes das linguagens populares inglesas do século XIX. A introdução feita pelo Professor David Trotter é um complemento extraordinário (embora, acredito, deva ser lida depois do romance). Então, por que seis meses para completar a leitura? Minhas desculpas são inúmeras: excesso de trabalho, exaustão mental, filho que dorme tarde, filho que acorda cedo, coisas para escrever, exigências profissionais de leitura, etc. Dá para escolher uma ou somar todas. Tanto faz. Há uma outra categoria de desculpas também: o romance é grande e cheio de notas (eu leio as notas); precisa ser degustado, seja na forma de sua escrita, seja na sua ambientação (tão cara ao meu eu historiadora).
Poderia ser tudo isso, e foi tudo isso. Mas houve também algo que só compreendi quando reencontrei Pip em meados de dezembro. Um incômodo, um mal estar, um reconhecimento que me jogou de volta à minha primeira leitura de Grandes Esperanças. O volume pesadão de Dickens ficou tantos meses fechado à minha cabeceira, agora eu sei, não só pelas minhas desculpas grandes ou pequenas, mas por conta desse reconhecimento. Por conta do Pip e do quanto eu não sabia da relação que eu tinha com ele.
great-expectations-1946-3
Esta não é uma postagem de resenha, apenas de impressões gerais sobre o livro. É fruto de uma leitura pessoal e, se você estiver buscando na postagem algum guia de leitura, talvez seja melhor parar por aqui. Aos que seguirem, gostaria de explicar as circunstâncias de minha releitura.
Sempre narro que cresci com muitos livros e que meus pais eram leitores. Mas a realidade foi menos romântica do que a frase sugere. Meus pais eram leitores sim, mas meu pai era leitor de pulp: espaçonaves, cowboys, coisas assim. Minha mãe sempre preferiu os livros de filosofia religiosa, auto-ajuda e outros do gênero. Eu, bem, eu lia até bula de remédio. Nenhum deles me guiou a qualquer tipo de leitura ou orientou na escolha das edições ou dos clássicos. Além disso, como a maioria das crianças e adolescentes, eu desconfiava das indicações escolares, quase nunca as seguia. Meu maior indicador de leituras era aquela lista de publicações que as editoras colocavam no fim do livros. Foi assim que cheguei numa coleção da Ediouro que recontava clássicos para juventude. Esse foi meu primeiro contato com Dickens e seu David Copperfield, depois Oliver Twist e, por fim, Grandes Esperanças. Devia ter em torno de 12 ou 13 anos. Assim, tenho passado alguns bons momentos de minha vida adulta a reler estas obras, agora, na sua forma completa, em alguns casos, até na língua original.
images (1)
Recordo isso porque, por mais que eu nunca tenha cessado de expressar minha admiração por Dickens – a qual sempre esteve ligada a minha irrecuperável tendência para a esquerda – o fato é que eu não tinha a dimensão do impacto do escritor inglês na minha formação literária. Veja, estou falando de textos que eram recontados, adaptados por bons escritores brasileiros, não das construções originais. Ainda assim, quem sou eu para, por conta disso, diminuir a força de uma grande história. Charles Dickens me orientou em direção ao século XIX, à história e ao desconfortos de viver em nossa civilização. De seus personagens emblemáticos, talvez Pip seja aquele que mais me tenha falado.
Pip é minúsculo. Um herói mesquinho. Sua história, porém, traz em seu âmago o desconforto que os últimos dois séculos de igualdade jurídica nos legaram. Pip sofre da mais absoluta sensação de inadequação. Quando pobre, criado pela irmã e pelo cunhado, ele se vê como alguém inadequado por ter sobrevivido aos pais, por nunca saber expressar corretamente a gratidão que esperam dele, por ser criança e sentir como criança num mundo de adultos. Quando é escolhido para ser o brinquedo de Estella e da Sra. Havishaw, ele passa a sofrer pela inadequação de suas roupas e modos para um mundo que ele pressente ser maior. Então, tudo o que o cerca torna-se pequeno, desprezível, porque todas as coisas que o formam o fazem pequeno e desprezível. Nesse olhar desabonador, está também a percepção de ser muito mais do que o destino se encarregou de lhe legar. Logo, a angustia de Pip é que ele nunca será o bastante para si mesmo. Todos são iguais, professa a lei, mas o que seria alcançar essa igualdade? Para Pip, essa igualdade só começaria quando ele pudesse ser superior a si mesmo e a todas as suas circunstâncias.
As grandes esperanças não são apenas de Pip, que aguarda que a vida melhore por conta de alguma fada madrinha que venha destacá-lo, reconhecer o valor intrínseco que só ele vê em si mesmo. As grandes esperanças são destes séculos novos – o XIX e o XX – que vieram a convencer-nos de que nunca, por mais que façamos, somos o suficiente para nós mesmos. Dickens não traçou apenas um retrato vivo do mundo industrial e capitalista, através de Pip ele foi até a alma das pessoas nascidas desse tempo. Eternamente inconformadas; presas a desejos inatingíveis; carregando, como as bolas de ferro dos forçados, essa insustentável sensação de inadequação ao que a existência lhes apresenta como dado. As ambições de ascensão de Pip são, por conta disso, mesquinhas, egoístas, materiais. Não são diferentes daquelas com que nos confrontamos todos os dias. Pip redecora dezenas de vezes os seus aposentos; Pip deslumbra-se com suas roupas de cavalheiro; Pip sente-se muito dono de si por poder pagar pelo que quer. Usando uma frase ao gosto das redes sociais: todos somos Pip. E também somos Estella, com todo o nosso alto conceito sobre nós mesmos e todas as más escolhas. E somos Sra. Havishaw e seu culto ao passado e aos rancores com o mundo em constante transformação.
Eu poderia falar ainda da romantização do velho Joe, essa pedra angular do romance. Pedra porque imutável, contendo em si toda a simplicidade e decência dos que aceitam o que são e, não nos enganemos, essa é uma virtude que Charles Dickens admira.
Sra. Havishaw
Eu poderia falar da Sra. Havishaw que, para mim, continua a ser uma das mais atordoantes imagens literárias já criadas. O que essa noiva velha, em seu vestido decrépito. ao lado de seu bolo de casamento podre, causa em mim não é menor do que causou quando eu tinha 12 anos. Fantasmagórica e amedrontadora, para mim, ela sempre será uma imagem de pesadelo.
Ainda há Estella e Bidi e o fato de eu nunca ter conseguido simpatizar com nenhuma das duas. Não gosto também do exercício vingativo (me aproprio da interpretação do Prof. Trotten aqui) no destino de Estella ou das recompensas a Bidi, mas não interprete isso como uma crítica ao romance, são reações. As minhas reações ao romance. Sou tão somente a velhinha no fim da fila, a que houve a história e se escandaliza com seus rumos.
Mas, de todos, eu sei, foi Pip que me fez estagnar na leitura. Pip, esse espelho incomodo que Dickens levanta aos seus leitores. Esse garoto cheio de esperanças que envolvem o reconhecimento dos outros e não seus próprios esforços. Esse menino ambicioso, eternamente incompleto, buscando na matéria uma aceitação que não encontra em si. Pip é filho e pai da época que gestou nosso mundo. Sua inadequação e insatisfação são as nossas. Por isso é tão difícil lidar com Pip, e com a melancolia que acompanha o estar com ele.
site:
http://nikelenwitter.sul21.com.br/2014/01/pip-e-nossa-epoca-de-grandes-esperancas/