Lucas 11/08/2019
Os manuscritos não ardem: Nunca um livro foi tão atrelado à uma premissa
Mikhail Bulgákov (1891-1940) foi um grande dramaturgo ucraniano, que sofreu na pele, algo recorrente em seu meio, a opressão do Estado Soviético, que muito contribuiu para que a literatura russa sofresse um nítido processo de estagnação por quase todo o século XX. Principalmente como dramaturgo, Bulgákov chamava a atenção das autoridades por seu brilhantismo em expor, de forma velada, as características midiáticas opressoras que o governo da URSS, especialmente em seus primeiros anos, impunha ao seu próprio povo.
Apesar de ser no teatro que Bulgákov construiu um legado mais amplo, é na literatura que ele acabou se popularizando no Ocidente, com a obra O Mestre e Margarida, lançada postumamente no fim da década de 60, primeiro na Alemanha Ocidental e depois na URSS, em 1973. O romance consumiu os últimos doze anos da vida do seu criador, que sofreu com a censura estatal e até queimou uma parte do manuscrito, com medo de ser punido.
Tirando a carga do absurdo (que será explicada mais a frente), muitas das passagens e até mesmo a postura geral do protagonista masculino da obra são baseadas na própria vivência de Bulgákov. A narrativa se passa em algum momento da década de 20, provavelmente em 1929, quando a ainda jovem URSS passava pelos primeiros anos do governo que mais a definiu (para o bem e para o mal) até seu fim em 1991: Joseph Stálin (1878-1953), ditador que levou aos recônditos mais radicais a Revolução de 1917, com extermínio, medo e opressão. O protagonista, Mestre (não é denominado de outra maneira, o que pode caracterizar a universalidade de seus dilemas) é um escritor decadente que escreveu um romance sobre Poncio Pilatos e sua atuação como procurador (pelo menos a tradução da obra define sua ocupação desse modo) junto ao "processo" que condenou Jesus à crucificação (na obra, Jesus é nomeado por seu nome em hebraico, Ieshua Ha-Notzri). Dono de uma compreensão literária bastante robusta, o Mestre acaba por se apaixonar por Margarida, a protagonista feminina, doce figura que exerce influência sobre ele e sobre a grande temática da narrativa, que é a opressão midiática que agia nos mais diversos meios literários no início da URSS.
Por mais que sejam, de fato, os protagonistas, tanto o Mestre quanto Margarida aparecem na narrativa aos poucos: o primeiro aparece de forma mais direta apenas no capítulo 13 (a obra possuiu 32 capítulos e um epílogo), ao passo que Margarida surge com um capítulo próprio na segunda e última parte. Nesse interlúdio inicial, antes da descrição do Mestre e suas desilusões, Bulgákov coloca em suas páginas muito do absurdo, satírico e trágico que define, o romance. Na realidade, a narrativa em seu início descreve o aparecimento em Moscou de Woland, um misterioso estrangeiro que se apresenta como mestre de magia e que estava na cidade para apresentar shows de mágica baseadas em magia negra. O passar das páginas, todavia, revela que Woland é na verdade uma entidade satânica, capaz de muitas maldades.
Contudo, a obra não trata Woland como um herói inapropriadamente diabólico. Este tipo de preconceito é enraizado muitas vezes em crendices populares, mas se for averiguado mais a fundo por leitores curiosos, percebe-se que Woland e seu séquito (composto por Korôviev, espécie de tradutor e ilusionista; Azazello, de feição vampiresca; Behemoth, o famoso gato preto falante e cômico; e Hella, criada de Woland) não agiam por mal de forma gratuita. As primeiras dezenas de páginas reforçam isso, já que o mencionado estrangeiro surge numa ocasião onde se defendia a inexistência de Jesus Cristo. Esta tese, que estava em voga no contexto político soviético da época (um dos traços do Stalinismo era a negação de religiões, não só na crença ao Filho de Deus) é desconstruída com provas plausíveis pelo "Diabo". Esta é somente a primeira de inúmeras situações que não visam colocar um sentido dogmático de luta entre Deus e Satã, mas sim trazer uma nova tônica à narrativa, que caracteriza toda a oralidade presente na obra: a sátira.
Ela se faz presente em praticamente todas as "cenas" do romance; por vezes de forma indireta ou em alguns momentos expondo situações totalmente absurdas, a sátira faz d'O Mestre e Margarida um livro engraçado, mas baseado num "humor negro" que, com a mesma facilidade que possui em trazer risadas, traz repugnância ao leitor. São inúmeras as situações aleatórias que muito contribuem para que a obra seja um misto de estilos, onde o cômico e o surreal sobrepõem-se sobre todos os outros.
Este outro elemento, a aleatoriedade narrativa, é recorrente nas páginas. Em realidade, Bulgákov mostra um espantoso fluxo imaginativo, que lembra um pouco o realismo mágico sul-americano que surgiu quarenta anos depois (na década de 60), mas de uma forma totalmente crua, sem apegos poéticos. Um dos incontáveis exemplos pode ser extraído dessa parte, longa, mas cuja exposição aqui é necessária para que se atente a leitores mais realistas: "[...] teve a impressão de voar para algum lugar em que avistava montes de ostras em imensos tanques de pedra. Depois sobrevoou um chão de vidro acima de fornalhas infernais a arder, com diabólicos cozinheiros brancos agitando-se entre elas. Depois, em algum lugar, tendo parado de compreender qualquer coisa, divisou porões escuros, onde ardiam uns castiçais, onde moscas serviam carne sibilando no carvão em brasa, onde se bebia em grandes canecas à sua saúde". Principalmente na segunda parte, o livro abriga várias descrições surreais similares que, se fazem com que o livro se torne cinematográfico em excesso, também podem cansar a leitura. O viés do absurdo é previsível ao se tratar de um tema tão mítico quanto o Satanás, mas há na leitura uma sensação intermitente de que se está em um "rolê aleatório".
O Mestre e Margarida é livremente inspirado em Fausto, um poema épico do alemão Johann Goethe (1749-1832), que envolve um personagem desiludido com a vida e que trava conhecimento com Mefistófeles, uma entidade diabólica. Fausto, como obra, serve como uma fonte cultural desconhecida na URSS da época, já que as similaridades entre a obra-prima de Goethe e o séquito de Woland não são percebidas de forma imediata e por todos que presenciam as peripécias deles. Fica a impressão de que Bulgákov tratou essa ignorância como uma forma de alfinetar o Estado, que controlava todo tipo de literatura que estava disponível aos soviéticos e acabou por isentá-los, ao menos temporariamente, de grandes obras literárias da época (Vida e Destino, de Vassili Grossmann, é um exemplo disso). Não é, contudo, o único tipo de crítica indireta que o autor faz às autoridades opressoras: há dezenas de outras espalhadas de forma explícita ou contextual nas quase 400 páginas da edição sempre bem-cuidada da Editora 34.
Além dos absurdos satíricos, Bulgákov traz em O Mestre e Margarida um "romance dentro de um romance". Isso porque os escritos do Mestre no seu trabalho próprio sobre Poncio Pilatos aparecem em capítulos específicos, que contrapõem ao aleatório relatado no contexto de Moscou. Ao descrever a relação de Pilatos com Jerusalém (também chamada pelo seu nome em hebraico, Ierushalaim) e as últimas horas de Ieshua, o leitor terá uma versão "alternativa" dos Evangelhos no que se refere às descrições de todo o martírio de Cristo. São várias as alterações, mas muitos nomes conhecidos se mostram, dando a entender que, no fim das contas, por mais que o Mestre quisesse inovar, os Evangelhos acabaram por ser a fonte principal da sua inspiração, até mesmo no sentido espiritual, de mensagem sagrada que Ieshua transmitiu em seus momentos derradeiros. O foco aqui está em Pilatos, personagem importantíssimo dentro dos Escritos Sagrados, mas cujo caráter individual foi sendo desfocado ao longo dos séculos. Mesmo assim, o romance do Mestre guarda vários momentos maravilhosos, como a conversa entre Pilatos e Ieshua, que lembra um pouco o capítulo O Grande Inquisidor, presente em Os Irmãos Karamázov (1881), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
A saga de Pilatos balanceia bem com o satírico presente na Moscou da década de 1920, e faz com que O Mestre e Margarida seja um romance razoável em termos de qualidade. Bulgákov quis demonstrar que o grande mal, o verdadeiro "diabo" está num Estado totalitário, que não tem capacidade para entender o subjetivo ou o abstrato (os últimos capítulos da obra e as informações reveladas no ótimo posfácio do tradutor Irineu Franco Perpetuo, da citada edição, reforçam esse contraponto). O autor faz isso abarcando uma imensidade de temas, que, se não possuem estruturação própria, amarram-se para construir uma história cômica e sombria, romântica e aterradora, entre outros dualismos que surgem e ressurgem num piscar de olhos.