André Figueiredo 28/04/2024
Ideia fascinante, mas com desenvolvimento a quem do esperado.
Duas cidades em uma. Ver e desver, num mecanismo que de alguma forma lembra o duplipensar, de 1984. Duas comunidades que, como os rios Negro e Solimões, convivem e não se misturam. Tudo isto numa atmosfera um tanto kafkaniana. Um livro com ótimo pano de fundo, porém com desenvolvimento morno, com uma metáfora que pouco ressoa na realidade brasileira e que deixa várias perguntas sem resposta.
Qualquer um que vive numa grande metrópole brasileira como o Rio de Janeiro, por exemplo, entende muito bem - ou deveria - a ideia de duas cidades convivendo como uma só, onde suas partes não se misturam. Diz o jornalista Misha Glenny, no livro "O dono do morro", que quando um cidadão da Rocinha desce o morro e vai para o asfalto, ele o faz com certo sentimento de estar entrando em terra estrangeira. A cidade e a cidade captura esta ideia maravilhosamente bem. Porém, para nós brasileiros, a crítica se esvazia quando a causa não é a desigualdade social. É "apenas" cultural e por motivo que fica em aberto no livro. Não há uma xenofobia, um preconceito, um clima explosivo que pede um equilíbrio a ser mantido ainda que por mecanismos radicais. Há apenas a separação de dois povos num mesmo lugar. Ponto. E isto, a meu ver, diminui a obra.
Por outro lado, a divisão em si e a forma como ela é descrita, em minúcia de detalhes, nas situações mais diversas, é um espetáculo a parte. Só que um espetáculo que se prolonga por tempo demais. Num livro como O senhor das moscas, as diversas situações com crianças náufragras servem para falar de nossa sociedade. Uma metáfora com alvo certo. Neste livro entretanto, como disse acima, isto pouco, ou nada, acontece. O leitor que tiver gostado da brincadeira de ver e desver, e todos os outros vários termos inventivos que o autor criou, tem muito o que curtir, por que isto ocupa boa parte do livro. Quem não se apegou tanto a este aspecto - meu caso - vai achar apenas que o livro se prende durante uma quantidade excessiva de páginas neste tema.
O fio condutor da história é a investigação de um assassinato e ela se dá, na maior parte do tempo, de forma morna. Por vezes entrando nos detalhes da pesquisa/investigação policial de modo apenas enfadonho. Não é algo sherlockiano, que faz o leitor dizer: "Uau! Que esperto!" E nem precisava ser, já que na vida real, levantamento de informação para a solução de um crime pode ser algo bastante maçante, mas aqui esse desenrolar maçante vai sendo mostrado. O que faz o leitor ter de aguentar a maratona, se desinteressar, parar de prestar atenção no desenrolar deste aspecto em específico e suportar o suplício até o final.
Não posso entrar em detalhes para não estragar a experiência, mas há um mecanismos externo às duas cidades que funciona de modo a mantê-las separadas. No princípio ele me pareceu uma coisa, depois, mais para o final, outra. Sendo que esta outra não convence como capaz de fazer o que faz.
Dada a enorme quantidade de detalhes sobre o inter-relacionamento do viver cotidiano das duas cidades, fica-se esperando o momento que vai ser explicado o porquê delas estarem separadas e como aquela situação foi criada. Mas esta explicação nunca vem.
E a cereja do bolo é a nota do tradutor ao final, que diz que "China Miéville escreve como se Borlú falasse em seu idioma, o besz, traduzido para o inglês por ele próprio de maneira inculta e um pouco tosca." Só que isto torna a leitura difícil. Desnecessariamente cansativa. Esse recurso estilístico do autor, a meu ver, não tem função alguma e não faz sentido existir. O livro não é uma transcrição feita por uma personagem. O narrador conta a história como em qualquer livro. Por que fazer isso?
Por fim, os personagens não empolgam. Nenhum deles.
Então, resumindo, temos uma situação interessante, surreal, cuja raiz não é explicada e cuja metáfora não diz muita coisa ao leitor brasileiro, servindo de pano de fundo (ou de frente) para uma investigação policial tediosa, que termina numa revelação que é qualquer nota, escrita de modo propositalmente cansativo.
O começo do livro promete, as últimas trinta páginas chegam a empolgar e, verdade seja dita, várias sacadas são bastante bacanas ao longo do livro. Além disso, nos fazer pensar sobre as populações invisibilizadas ao nosso redor é alimento para a cabeça muito bem vindo. Mas no fim, fica o gostinho de decepção.
É possível elogiar A cidade e a cidade, mas talvez mais pela intenção. Pelo fundo. Não pela forma.
Definitivamente este livro fez China Mieville entrar no meu radar, mas vou ter mais cautela antes de me animar a ler outro livro dele.