A cidade e a cidade

A cidade e a cidade China Miéville




Resenhas - A Cidade e A Cidade


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Antonio Luiz 22/12/2014

Como se desaprende a desver?
É interessante uma editora como a Boitempo, voltada para ciências humanas e filosofia, principalmente marxista, começar a publicar obras de ficção. Mais curioso ainda escolher não algum clássico do futurismo russo ou do realismo socialista, mas uma obra britânica de ficção científica de 2009, quando as editoras tradicionalmente voltadas para esse gênero, como a Aleph, ignoram quase tudo que tem sido publicado no exterior depois dos anos 1970.

Mas faz, no fundo, todo o sentido. China Miéville é um pensador de esquerda, com uma tese sobre marxismo e direito internacional e uma história de militância política (até 2013 no trotskista Socialist Workers Party e depois no eclético Left Unity), além de revolucionar a literatura especulativa desde 1998 com uma série de contos, romances e ensaios literários com os quais fundou uma nova corrente, o New Weird, e propôs explicitamente um novo tipo de ficção política e socialmente consciente, mesmo sem ser panfletária. Seu primeiro romance, Rei Rato (1998), foi publicado no Brasil pela pequena e já desaparecida Tarja Editorial e resenhado em Um Esopo para o Século XXI.

A Boitempo se propõe a editar outros, inclusive a trilogia de Bas-Lag (Perdido Street Station, The Scar e Iron Council, 2000-2004), mas começou por A Cidade & A Cidade, seu sétimo romance. Trata-se de um policial em um cenário que poderia ser considerado de ficção científico-antropológica, pois é estranhamente fantástico sem envolver magia e tecnologias futuristas ou alternativas. Trata-se de um par de cidades-estados imaginárias da Europa Oriental chamadas Beszel e Ul Qoma, situadas em um estuário (do Danúbio?) aparentemente junto ao Mar Negro e perto da Bulgária e Romênia. Talvez não seja irrelevante que Beszel, signifique “fala” em húngaro e Qoma, “chão” em hebraico.

O peculiar é que essas cidades falam línguas diferentes, têm sistemas econômicos, políticos e ideológicos opostos e uma história de rivalidades e hostilidades, mas não apenas são vizinhas, como têm territórios sobrepostos. Existem áreas puramente “besz” e áreas “ul-qomanas”, mas a maior parte da ação (e a mais interessante) se dá em áreas “cruzadas”, que pertencem simultaneamente às duas e pelas quais cidadãos dos dois Estados circulam diariamente, esforçando-se ao máximo para ignorar a existência uns dos outros. Aprendem desde cedo a “desver” e “desouvir” os estrangeiros, mesmo se moram em casas vizinhas, fazem compras na loja ao lado, andam nas mesmas calçadas e dirigem seus carros nas mesmas ruas.

Se um besz precisar falar com um ul-qomano que mora ao lado, precisa fazer uma ligação internacional. Para visitá-lo, tem de entrar na “Copula”, construção central que serve de conexão entre as duas cidades, apresentar passaporte à imigração e retornar ao mesmo espaço físico, invertendo seus hábitos para desver e desouvir os próprios concidadãos e mover-se apenas na cidade estrangeira. Quem desobedece e faz contato direto com pessoas e objetos do Estado vizinho é imediatamente sequestrado ou eliminado por uma entidade misteriosa conhecida como “Brecha”, encarregada de manter a separação a qualquer custo.

O protagonista e narrador, Tyador Borlú, é um investigador da polícia de Beszel encarregado de esclarecer o assassinato de uma jovem que inicialmente pensa ser uma prostituta, mas descobre tratar-se de uma arqueóloga estadunidense que trabalhava numa escavação em Ul Qoma e pretendia desvendar a origem da separação entre as cidades e o que existia entre elas. O aspecto detetivesco noir da trama não é particularmente inspirado ou eletrizante, mas funciona bem como pretexto para o investigador explorar as duas cidades e a “Brecha” e expor ao leitor a complexidade kafkiana dessa realidade alternativa.

É um cenário mundano e moderno do início do século XXI, os problemas pessoais, sociais e políticos são realistas e o lado peculiar do cenário não é tão absurdo. Em muitas cidades reais, a existência lado a lado de populações, poderes e realidades que se esforçam por não ver uma à outra é rotina. Considere-se, por exemplo, a coexistência da cidade das favelas, tráfico e milícias e de uma cidade maravilhosa da classe média, dos turistas e dos espetáculos no mesmo Rio de Janeiro, frequentemente separadas por uma esquina, ou nem isso. O cenário deste romance apenas leva essa possibilidade ao extremo.

A maioria dos romances de Miéville é ambientada em estranhas cidades imaginárias, das quais esta talvez seja a menos fantástica e mais insólita. Muitos leitores acostumados com o Old Weird acharam mais difícil suspender a descrença nesta obra, em que a barreira entre as cidades existe apenas na cultura e mente dos seus cidadãos, do que em outras nas quais a existência de mundos paralelos é “explicada” pela magia, à maneira do Beco Diagonal e da Plataforma 9¾ das histórias de Harry Potter, ou por “portais dimensionais”, como os da série de ficção científica Stargate. E ficam intrigados: afinal, o que isso significa?

Não é exatamente uma distopia, pois a vida nas duas cidades não é apresentada como particularmente terrível ou desumana. Beszel é uma democracia corrupta, e economicamente estagnada e sedenta de investimentos estrangeiros que lembra países do sul e leste da Europa em crise e Ul Qoma combina um regime autoritário, pós-socialista e hostil aos EUA com uma economia aberta e em rápida modernização, como a China moderna, mas esses aspectos não são centrais à história. Existem nacionalistas um tanto fascistas que pregam a supremacia de sua cidade e a anexação da vizinha e também há unificacionistas um tanto anarquistas que sonham derrubar os dois governos e a Brecha para unir os dois povos, mas isso é no máximo uma pista.

Seria indevidamente redutor tentar interpretar este romance como uma alegoria com um significado unívoco, mas seria um erro ainda maior julgá-lo apenas uma história fantástica, até porque a narrativa existe apenas para explorar sua ideia central. Entre as leituras possíveis, este resenhista destacaria a reflexão sobre o tema de como a ideologia se baseia em cegueira e autoengano voluntários, embora condicionados pela educação e pelo medo de sanções como a exclusão social. A separação entre Beszel e Ul-Qoma evoca o receio ou recusa a considerar a perspectiva alheia em questões sociais ou a questionar dicotomias de nação, classe, raça, gênero, sexualidade e outras. A “Brecha” faz pensar na mídia e nos intelectuais que compreendem o caráter artificial e arbitrário dessas distinções e podem ver além delas, mas as consideram indispensáveis para manter a ordem entre as massas das quais se afastaram e à quais não podem retornar, por não ter como desaprender o que descobriram.

É preciso fazer uma advertência quanto à tradução. Miéville quis dar ao texto, narrado em primeira pessoa, a voz peculiar de um estrangeiro com os deslizes gramaticais e estilísticos típicos de um homem do Leste Europeu ao falar ou escrever em inglês. Acontece que um alemão, húngaro ou eslavo ao se exprimir em português cometeria equívocos diferentes. O tradutor, ao tentar recriar as idiossincrasias do original em português, dá menos a impressão de um sotaque estrangeiro do que a de um falante nativo inculto ou descuidado. Vale a pena, porém, desver e desouvir esses pequenos tropeços para enriquecer a própria perspectiva com esta reflexão sobre a natureza relativa e limitante dos pontos de vista. Uma amostra:

"Eu não, mas quem não seria tentado a queimar ou picar em pedacinhos as anotações daquela conversa? Claro que eu não faria isso, mas... Fiquei sentado até tarde na mesa da minha cozinha, com elas espalhadas à minha frente, escrevendo distraído merda/merda por cima delas de vez em quando. Coloquei música: Little Miss Train, uma parceria, Van Morrison duetando com Coirsa Yakov, a Umm Kalszoum de Beszel, como era chamada, na turnê de 1987. Bebi mais e coloquei a foto de Marya Fulana Desconhecida Estrangeira Rompe-Brechas Detail ao lado das anotações.

Ninguém conhecia ela. Talvez, Deus nos ajude, ela não tivesse estado propriamente em Beszel afinal, embora Pocost fosse uma área total. Ela podia ter sido arrastada para lá. Os garotos encontrando o corpo dela, toda a investigação, isso podia ser brecha também. Eu não devia me incriminar levando isso adiante. Devia talvez apenas me afastar da investigação e deixar ela apodrecer. Foi escapismo por um momento fingir que eu podia fazer isso. No final, eu faria o meu trabalho, embora fazê-lo significasse quebrar um código um protocolo existencial de longe mais básico do que qualquer outro que eu fosse pago para defender.

Quando crianças, costumávamos brincar de Brecha. Nunca gostei muito desse jogo, mas aceitava minha vez me esgueirando sobre linhas marcadas por giz e sendo caçado pelos meus amigos, seus rostos em expressões assustadoras, suas mãos curvadas em forma de garras. Eu também fazia o papel do caçador, se fosse a minha vez de ser invocado. Isso, juntamente com puxar paus e pedras do chão e afirmar que eram o veio principal da magia besz, e a mistura de pique e esconde-esconde chamada Caça aos Insilados, eram jogos comuns."
Dalton 25/01/2015minha estante
Boa resenha, mas ela deixa de lado a estruturação de texto muitas vezes confusa e com pouca fluidez, que me obriga a reler trechos inteiros para não perder o fio da meada. Ainda estou lendo a obra, comprei-a inspirado pelo número de prêmios e pelo argumento (que é bom), mas quase me arrependi (e desisti) de lê-la, assim que li a biografia do autor.
Depois de 4 anos estudando esquerdopatas na comunicação - na faculdade de jornalismo - e mais dois no curso de Economia da UNIFESP (fora tudo que já acompanho em ambas as áreas, tomadas pelo marxismo aqui em nosso país), não nutria boas perspectivas para um livro escrito por alguém que faz parte da Internacional Socialista (!!!) e posa de intelectual marxista sem mostrar um pingo de vergonha ao defender uma ideologia responsável pela destruição econômica, social e institucional de 100% dos países nos quais alcançou o poder. Sem contar, claro, ser culpada inegável por um número de mortes tal, que a soma da peste negra, a gripe espanhola e os mortos pelo nazismo, juntos, não lhe fazem se quer sombra ou cócegas.
Enfim, tendo lido até aqui (um terço do livro), não deixa de ser extremamente irônico acompanhar um autor declaradamente marxista se utilizar descaradamente do conceito orweliano do "duplipensar" (sendo Orwell reconhecido como um anti-socialista ferrenho) para, nas entrelinhas, criticar a sociedade capitalista. Terminarei de ler a obra, mas temo que a arrogância e a prepotência na forma de escrever intrincada de Mieville (será que inspirada pela igualmente arrogante forma de redigir de camaradas como Adorno, Horkheimer ou Engels?), no final, só servirá para dificultar o entendimento de um texto, que em si, não têm trazido nada de novo. Estou cada vez mais inclinado a considerar o livro apenas mera extrapolação - a nível de cidades-estado-, do que seria uma Berlim dividida à força por um muro de medo (ao invés de concreto e soldados armados) e que sofre de uma amnésia artificialmente implantada sobre seu passado (um passado editado pela Brecha, que embora na trama seja uma espécie de sistema de olhar panóptico focautiano onipresente, pode, provavelmente, ter exercido a função de Ministério da Verdade orweliano editando e apagando registros históricos oficiais sobre a origem de uma mítica única cidade que unia Bezel e Ul Qoma para reforçar a narrativa nacionalista e de terror que lhe confere poder.)


Murilo Amorim 25/03/2015minha estante
Conde, de onde vc tirou a sandice de que Orwell era "anti-socialista ferrenho"?
Ao contrário, Orwell era socialista, mas um crítico dos rumos que o Stalinismo tomou após a Revolução de 17. Pouco tempo antes de escrever 1984 ele disse em uma carta, ressaltando os ideias da revolução: "Da mesma forma que eu iria apoiar a URSS contra a Alemanha, porque acho que a URSS não pode escapar completamente de seu passado e mantém bastante as ideias originais da Revolução para torná-la um fenômeno mais esperançoso do que a Alemanha nazista." No próprio "Animal Farm" a crítica ao Stalinismo fica muito longe de se confundir com o ataque ao socialismo: os dois personagens retratados de forma mais positiva (o Major e o Bola-de-Neve) são claramente inspirados em Marx e Trotsky.


Claudia Cordeiro 05/07/2015minha estante
Ótimo comentário, Conde. Não vou ler esse livro.


sagonTHX 06/07/2015minha estante
Conde, ótimo comentário. Concordo contigo, achei o livro um saco no quesito político. A parte policial foi passável. Esse é um tipo de livro que eu não relia outra vez e muito menos recomendo.


romulo mafra 03/11/2015minha estante
Até aqui o "conde" vem dar o ar de sua desgraça??? Aliás, seria aquele conde do Orkut??? Que lástima ahahahahaha




Raphael Pensador 02/10/2023

CANSATIVO
Infelizmente achei um livro cansativo e enfadonho.
Arrastei-me na leitura, contudo como não gosto de deixar as coisas pela metade....o terminei.
Não sei o que foi que aconteceu, porém achei a narrativa um pouco pesada.
Uma cidade que divide-se em duas e que há dois povos e que vivem a não se verem.
Estou a postar uma frase contida no livro que discrimina meu sentimento da leitura desse livro:

"? Então você não entendeu nada dela?
? Infelizmente não, a força não estava comigo -"
p. 183
Myria.Viana 02/10/2023minha estante
???




HeloAsa16 26/07/2023

A história é boa mas?
A história tem tudo pra ser muito boa mas a forma que foi escrita deixa a desejar. Uma escrita super confusa e pouco detalhada.
Agnaldo Alexandre 18/09/2023minha estante
Entendo você, mas detalhe é para manual técnico, na literatura, muita mastigação estraga o gosto da leitura.




Paula 08/06/2020

Enredo incrível
Um livro com um quê de 1984 combinado com histórias de investigação. A construção desse universo é incrível, faz com que o leitor entenda a sua premissa.
Carol 18/06/2020minha estante
Oi




Carlos Magno 07/02/2015

RESENHA DO BLOG "CANTINA DO LIVRO":

Beszél e UI Qoma são duas cidades-estado situadas geograficamente no mesmo lugar, porém completamente opostas. Os cidadãos de cada lugar aprenderam a não ver (ignorar ou "desver", como é definido no livro) a outra cidade, sejam as pessoas, lugares ou qualquer coisa referente ao "outro lado da moeda", sob pena de terem feito uma brecha, acarretando assim em punições gravíssimas, de acordo com o nível da brecha. Para ficar mais claro: cometer uma brecha é como você estar em UI Qoma e parar para admirar um ponto turístico de Beszél, por exemplo. Transitar de uma cidade para outra é algo quase incabível para os cidadãos comuns.

Mas quem controla tudo isso? As duas cidades são administradas por uma monolítica autoridade denominada de Brecha (B maiúsculo), uma "instituição" temida por todos de ambos locais.

Diante de tudo isso que foi descrito, a história de A Cidade & A Cidade nos apresenta um crime curiosíssimo: Uma jovem foi morta em Beszél mas logo descobre-se que ela vivia em UI Qoma. Sem identidade, motivos aparentes ou o que ela fazia, o inspetor Tyador Borlú foi incumbido de investigar o caso. E claro, logo viriamos que não se tratava de um crime qualquer. A apreensão aumenta proporcionalmente ao quanto o inspetor Tyador Borlú se envolve com a resolução do crime. No que a jovem estaria envolvida a ponto de ser assassinada? Quem o faria e quais os motivos para isso?

Em meio a todo aquele problema, descobrimos mais um mistério paralelo que englobaria o livro: o mito de uma terceira cidade "fantasma", com suas próprias leis e regras: Ornicy.

O livro é dividido em três partes de acordo com a transição de Borlú pelo crime: Beszél, UI Qoma e Brecha. A Obra se destaca não apenas pelo seu conteúdo arrebatador e surpreendente, mas também pela visivel preocupação do tradutor da obra (Fábio Fernandes) em manter a forma como o autor China Mieville decidiu desenvolver seu trabalho, preservando aspectos como as linguagens dos personagens (gírias e palavras comuns naquela respectiva localidade) como os lugares descritos.

RESENHA COMPLETA:

site: http://cantinadolivro.blogspot.com.br/2015/02/resenha-cidade-cidade.html
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Léo T 19/04/2015

Ainda bem: não é um manifesto.
A CIDADE E A CIDADE é um livro sobre duas cidades que ocupam o mesmo espaço geográfico e são completamente divididas - não por muros, mas pelos próprios cidadãos que aprendem desde criança a "desver" (lê-se: ignorar) os habitantes, prédios, carros e até mesmo assassinatos que acontecem na "outra" cidade. Qualquer habitante que desobedeça esta clivagem e "veja"elementos da outra cidade é imediatamente detido por uma poderosa sociedade secreta chamada Brecha, que existe para policiar esta separação entre as duas cidades.
Neste cenário, o detetive Borlú da cidade de Beszél (uma das cidades - espécie de Berlim Oriental) se depara em seu "território" com o corpo desfigurado de uma universitária da cidade de Ul Qoma (a outra cidade - espécie de Berlim Ocidental), brutalmente assassinada. Os primeiros indícios apontam para um assassinato que aconteceu nas duas cidades ao mesmo tempo, o que torna a investigação de Borlú confusa e muito perigosa, principalmente quando ele descobre um complô envolvendo a Brecha.
Mais do que uma ficção-científica noir, esta primeira obra do China Miéville - Brasil a que tive acesso (ganhou vários prêmios da área) é uma alegoria muito bem feita sobre divisões sociais ou étnicas comuns em metrópoles mundo afora. Gostei bastante. China é inglês, doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics e esquerdista assumido, o que dá contornos muito mais fortes e realistas para os embates políticos e sociais entre as duas cidades narrados na obra.
No entanto, para minha sorte, o livro é um suspense policial de fato e não um manifesto. O final do enredo deixou um pouco a desejar, mas a ambientação das duas cidades coexistindo e se ignorando no mesmo espaço geográfico é de uma criatividade absurda, o que já vale a leitura. Isso sem falar nas perseguições acontecendo simultaneamente nas duas cidades sem que as pessoas possam se tocar ou se ver - o máximo. Próximo alvo: PERDIDO STREET STATION, do próprio China.
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Shaqit 08/09/2015

As fronteiras fantásticas de China Miéville
Uma cidade qualquer no mundo. Um homem não consegue enxergar todos à sua volta. Os diferentes são invisíveis aos seus olhos: os que cultuam outras divindades, usam outras roupas, falam outra língua. É algum país convulsionado no período pós-soviético? É Jerusalém em suas divisões geográficas? Não, pois a invisibilidade aqui é real. Estamos falando de Beszel, cidade-estado fictícia da obra do escritor britânico China Miéville, A cidade & a cidade. Dividindo seu território com Ul Qoma, outra cidade-estado, os habitantes de ambas são “proibidos” de ver uns aos outros, precisam se ignorar, pois correm o risco de fazer “brecha” e cair nas garras de uma misteriosa entidade que protege as fronteiras das duas cidades.

***
Dois gêneros constantemente marginalizados pela crítica literária em geral são a fantasia e o policial. Em A cidade & a cidade, o escritor britânico junta os dois para construir uma importante e impactante obra que transcende os gêneros, quebrando as amarras que os prendem às convenções e os limitam. Miéville costuma dizer que aprecia a literatura fantástica pois a mesma funciona para “além da metáfora”. As cidades que coexistem mas são invisíveis uma para a outra não é apenas uma forma de se referir às cidades divididas como Jerusalém atual ou a antiga Berlim. Ou ao nível mais geral de invisibilidade que determinadas características constroem no cotidiano das grandes e pequenas cidades no mundo, como a cor, o credo, a classe. As cidades são literalmente assim. E é nessa característica que Miéville nos conduz em sua trama. O procedimento é o clássico do gênero policial: um corpo é encontrado, nada se sabe a princípio quem é a misteriosa mulher assassinada. Pistas vão surgindo e se aponta algo grande demais, onde o detetive Tyador Borlú se sente ludibriado ou empurrado para longe. Seguir Borlú e ir aprendendo sobre a geografia e história de Beszel e Ul-Qoma é fascinante. E é na construção do espaço, que aqui atua como um importante personagem, que o romance brilha.

***
Embora diga que o movimento “new weird”, do qual foi um dos principais representantes, é passado, o bizarro, o estranho, não se desprendeu da obra de Miéville. E isso não é, de forma alguma, demérito. Ganhador de diversos prêmios, inclusos o Locus Award, World Fantasy Award, Arthur C. Clarke Award, o prêmio da Associação Britânica de Ficção Científica e o Hugo Award, maior prêmio do gênero de Ficção Científica, a estranheza que permeia a obra de Miéville por completo e esse livro em particular mostra que possui muita força. Buscando inspiração em mestres da literatura policial mais ‘pé no chão’ e suja, como Raymond Chandler e Dashiell Hammett, e também em autores de ficção científica como Philip K. Dick e no expoente da literatura fantástica, o polaco Bruno Schulz, a quem o livro é dedicado, é que Miéville constrói sua trama. A jornada do inspetor Borlú pelas duas cidades na perseguição do assassino da jovem conhecida de início apenas como Fulana Detail, é instigante. Sua incursão pelo submundo da política também é interessante. Embora não panfletário, esse livro perpassa algumas ideias que o autor defende enquanto militante. Segundo o próprio, é impossível se dissociar, pois é a forma qual ele vê o mundo. E é esse diferencial que o eleva a um dos grandes nomes da atual ficção científica mundial, embora sua obra seja difícil de classificar. E é nessa “brecha” entre os gêneros que esse romance se faz, lançando mão de diversos tropos literários, sobretudo da fantasia e do policial, para questionar, principalmente, os conceitos de fronteira que possuímos. Tanto a fronteira geográfica, na questão irreal das divisões absurdas das duas cidades, chegando a pontos onde ninguém sabe ao certo a qual cidade pertence, até as fronteiras sociais, colocando em xeque o conceito de “desver” a qual os cidadãos de cada cidade são treinados para não perceber o da sua contrapartida (é crime punido pela assustadora Brecha, entidade mítica e misteriosa que supervisiona as duas cidades). Nos fazendo questionar a organização social e também apreciando esses moldes clássicos da narrativa de gênero, Miéville mostra que para ser relevante pode, assim como o inspetor Borlú, viajar entre fronteiras absurdas mas bem marcadas entre a chamada “baixa e alta” literatura. E, ainda bem, estamos em um período que “fazer uma brecha”, como os personagens da obra, não é crime. É, diria, até desejável. Que mais fronteiras sejam transgredidas, por favor.





site: http://fastfoodcultural.com.br/a-cidade-a-cidade-as-fronteiras-fantasticas-de-china-mieville/
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Leonardo T. 05/10/2015

Já imaginou duas cidades que ocupam o mesmo espaço físico? O China Miéville já.
Crítica publicada originalmente no site leioeu.com.br

As histórias de China Miéville chegaram às terras brasileiras pela extinta Tarja Editoral, em 2010 com o romance Rei Rato. Com a descontinuidade da Tarja os leitores brasileiros ficaram sem um horizonte de obras traduzidas desse relevante autor que começou uma nova corrente de literatura de ficção conhecida como "New Weird". Mas as brumas da incerteza logo se dissiparam, pois a Boitempo havia anunciado a compra dos direitos de publicação em língua portuguesa de toda a obra desse autor singular. E, em 2014, trouxe, pela primeira vez, a versão em língua portuguesa do sétimo romance de Miéville: A Cidade & A Cidade.

A Cidade & A Cidade parte de uma premissa extremamente instigante e criativamente estimulante. Imagine duas cidades-estados que existem no mesmo espaço físico. Sim! Não são separadas por geografia e fronteiras físicas, mas sim pela mente de seus habitantes. As cidades se chamam Beszel (cidade de origem do narrador-protagonista) e Ul Qoma, e são separadas por uma espécie de conduta mental onde seus cidadãos aprendem a desver os habitantes, prédios, trânsito e tudo mais que pertença a outra cidade. Mesmo que os moradores de Beszel estejam em um prédio adjacente a um prédio de Ul Qoma, os mesmos falam línguas diferentes, e se precisarem fazer alguma ligação entre as cidades é preciso fazer uma ligação interurbana.

Tendo este incrível cenário de pano de fundo (nem tão de fundo assim!) acompanhamos a jornada narrativa do detetive Tyador Borlú, do Esquadrão de Crimes Hediondos de Beszel. Borlú se depara com o assassinato de uma jovem, que a princípio parece ser apenas mais um simples caso de violência urbana, mas que, conforme o investigador vai mergulhando na cena do crime e nos fatos incongruentes que o cercam, mais ele se envolve com um grande mistério que envolve as duas cidades.

Há uma espécie de "sociedade secreta" conhecida como Brecha, que controla as barreiras mentais entre as duas cidades. Ou seja, um cidadão de Beszel que ouse "ver" um cidadão ou qualquer outra faceta de Ul Qoma (e vice versa) está em apuros, pois está cometendo o que eles chamam de brecha e pode ser perseguido e julgado pela sociedade homônima.

Estes três elementos (As cidades, a investigação de um assassinato e a Brecha) formam a trama do romance. Podemos encarar como uma espécie de romance policial, mas a história vai muito mais além e provoca estranheza e admiração.

A questão do "desver" o outro pode ser usada para refletir sobre a nossa própria condição como sociedade. Não é difícil reparar que em uma cidade grande como, por exemplo, São Paulo existam duas cidades. Quantas vezes não "desvemos" os moradores de rua, as favelas etc.

Só pela premissa das cidades, A Cidade & A Cidade vale cada centavo pago e cada segundo de leitura. É um livro onde o mais importante está nos ornamentos e detalhes espalhados aqui e acolá na história principal. E, é claro, na metáfora (proposital ou não) que nos faz refletir sobre a nossa condição enquanto sociedade e ética humana.

Leitura altamente recomendada.


site: http://www.leioeu.com.br/2015/10/a-cidade-cidade.html
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André Figueiredo 28/04/2024

Ideia fascinante, mas com desenvolvimento a quem do esperado.
Duas cidades em uma. Ver e desver, num mecanismo que de alguma forma lembra o duplipensar, de 1984. Duas comunidades que, como os rios Negro e Solimões, convivem e não se misturam. Tudo isto numa atmosfera um tanto kafkaniana. Um livro com ótimo pano de fundo, porém com desenvolvimento morno, com uma metáfora que pouco ressoa na realidade brasileira e que deixa várias perguntas sem resposta.

Qualquer um que vive numa grande metrópole brasileira como o Rio de Janeiro, por exemplo, entende muito bem - ou deveria - a ideia de duas cidades convivendo como uma só, onde suas partes não se misturam. Diz o jornalista Misha Glenny, no livro "O dono do morro", que quando um cidadão da Rocinha desce o morro e vai para o asfalto, ele o faz com certo sentimento de estar entrando em terra estrangeira. A cidade e a cidade captura esta ideia maravilhosamente bem. Porém, para nós brasileiros, a crítica se esvazia quando a causa não é a desigualdade social. É "apenas" cultural e por motivo que fica em aberto no livro. Não há uma xenofobia, um preconceito, um clima explosivo que pede um equilíbrio a ser mantido ainda que por mecanismos radicais. Há apenas a separação de dois povos num mesmo lugar. Ponto. E isto, a meu ver, diminui a obra.

Por outro lado, a divisão em si e a forma como ela é descrita, em minúcia de detalhes, nas situações mais diversas, é um espetáculo a parte. Só que um espetáculo que se prolonga por tempo demais. Num livro como O senhor das moscas, as diversas situações com crianças náufragras servem para falar de nossa sociedade. Uma metáfora com alvo certo. Neste livro entretanto, como disse acima, isto pouco, ou nada, acontece. O leitor que tiver gostado da brincadeira de ver e desver, e todos os outros vários termos inventivos que o autor criou, tem muito o que curtir, por que isto ocupa boa parte do livro. Quem não se apegou tanto a este aspecto - meu caso - vai achar apenas que o livro se prende durante uma quantidade excessiva de páginas neste tema.

O fio condutor da história é a investigação de um assassinato e ela se dá, na maior parte do tempo, de forma morna. Por vezes entrando nos detalhes da pesquisa/investigação policial de modo apenas enfadonho. Não é algo sherlockiano, que faz o leitor dizer: "Uau! Que esperto!" E nem precisava ser, já que na vida real, levantamento de informação para a solução de um crime pode ser algo bastante maçante, mas aqui esse desenrolar maçante vai sendo mostrado. O que faz o leitor ter de aguentar a maratona, se desinteressar, parar de prestar atenção no desenrolar deste aspecto em específico e suportar o suplício até o final.

Não posso entrar em detalhes para não estragar a experiência, mas há um mecanismos externo às duas cidades que funciona de modo a mantê-las separadas. No princípio ele me pareceu uma coisa, depois, mais para o final, outra. Sendo que esta outra não convence como capaz de fazer o que faz.

Dada a enorme quantidade de detalhes sobre o inter-relacionamento do viver cotidiano das duas cidades, fica-se esperando o momento que vai ser explicado o porquê delas estarem separadas e como aquela situação foi criada. Mas esta explicação nunca vem.

E a cereja do bolo é a nota do tradutor ao final, que diz que "China Miéville escreve como se Borlú falasse em seu idioma, o besz, traduzido para o inglês por ele próprio de maneira inculta e um pouco tosca." Só que isto torna a leitura difícil. Desnecessariamente cansativa. Esse recurso estilístico do autor, a meu ver, não tem função alguma e não faz sentido existir. O livro não é uma transcrição feita por uma personagem. O narrador conta a história como em qualquer livro. Por que fazer isso?

Por fim, os personagens não empolgam. Nenhum deles.

Então, resumindo, temos uma situação interessante, surreal, cuja raiz não é explicada e cuja metáfora não diz muita coisa ao leitor brasileiro, servindo de pano de fundo (ou de frente) para uma investigação policial tediosa, que termina numa revelação que é qualquer nota, escrita de modo propositalmente cansativo.

O começo do livro promete, as últimas trinta páginas chegam a empolgar e, verdade seja dita, várias sacadas são bastante bacanas ao longo do livro. Além disso, nos fazer pensar sobre as populações invisibilizadas ao nosso redor é alimento para a cabeça muito bem vindo. Mas no fim, fica o gostinho de decepção.

É possível elogiar A cidade e a cidade, mas talvez mais pela intenção. Pelo fundo. Não pela forma.

Definitivamente este livro fez China Mieville entrar no meu radar, mas vou ter mais cautela antes de me animar a ler outro livro dele.
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Davenir - Diário de Anarres 25/02/2016

Uma história para pensar nossas cidades
A cidade & a cidade é uma mistura de Romance Policial com Ficção Cientifica, num estilo que o autor, China Mieville, chamou de New Weird. O estranhamento deste mundo vai se dissipando ao longo da obra e o diálogo que ela faz com nosso mundo mostra que ele é tão ou mais weird que as cidades onde se passam a história.

A história: Acompanhamos o inspetor Tyador Borlú que investiga o assassinato de uma misteriosa mulher na cidade de Beszél. Contudo, Borlú tem motivos para acreditar que o crime foi cometido na cidade vizinha de Ul Qoma. Ai que vem o grande atrativo da história: As cidades de Ul Qoma e Beszél ocupam o mesmo local geográfico. Existem áreas totais, exclusivas de cada cidade, e as áreas cruzadas, onde ambos os cidadãos podem passar porém não podem interagir. Também existe uma polícia especial que vigia e pune todos que atravessam ilegalmente as fronteiras imateriais entre Beszél e Ul Qoma chamada Brecha, e este é um crime considerado pior que o assassinato.
O leitor pode esperar ter respondida muitas questões da vida cotidiana que emergem de um cenário tão estranho quanto esse. Bórlu vai percorrer todos os mistérios do assassinato e das cidades e essa jornada é tão importante quanto a resolução da trama.

Muros invisíveis: A obra tem potencial de abrir o debate social e político ao tratar do tema das cidades. Dialoga com os limites nacionais bizarros de nosso mundo real, tendo em Beszél e Ul Qoma um pouco de cada mas trazendo algo imaginativo o suficiente para não associarmos imediatamente com nenhuma delas. Alguns exemplos são: Os checkpoints e as áreas compartilhadas de Israel e Palestina; As diferenças culturais das duas Alemanhas, que após a queda do Muro de Berlin, ainda guardam ressentimentos entre wesses e osses, ou seja, ainda existe muros invisíveis; e a África do sul que ainda não dissolveu os bantustões. Também podemos falar das grandes cidades como Rio de Janeiro e a divisão entre favela e asfalto, não seria um muro invisível como se fossem duas cidades?
O livro é narrado pelo Inspetor Bórlu e tem a qualidade literária inventiva do autor, pois é escrito como se fosse traduzido do Bész, a língua fictícia do personagem. Assim algumas coisas são traduzidas "errado" e outros termos tem de ser explicados pois só fazem sentido na realidade das duas cidades.
Os personagens são interessantes, apesar do romance centrar-se mais na investigação e no cenário inusitado que cerca a obra. Borlú começa parecendo um típico funcionário público que deseja se livrar do caso abacaxi mas acaba ficando obcecado em resolver por ser o único capaz de fazê-lo, apesar da pressão cotidiana das cidades e o medo da Brecha apertando o cerco contra ele.
A obra faz, no trato com o cotidiano, um retrato de todas as cidades, o "desver" dos cidadão de Beszél e Ul Qoma não se torna complicado se andarmos no centro movimentado de qualquer grande cidade e olharmos com mais atenção. Um bom exercício de reflexão depois de ler A cidade & a cidade.

Sobre a edição lida para a resenha: A cidade & A cidade, de China Mieville é a única edição deste livro no Brasil e saiu pela Boitempo em 2014 (286 p.). Está muito bonita e a arte da capa espetacular. A única coisa que estraga é o tamanho grande do autor e o pequeno do título, dá a impressão de que CHINA MIEVILLE é o título, porém seguiram as capas das edições inglesas que são assim também, o que fica estranho pois no Brasil pelo autor ser pouco conhecido. Contudo não julguem pela capa.

site: http://www.wilburdcontos.blogspot.com.br/2016/02/resenha-cidade-cidade-china-mieville.html
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Márcio Leal 22/03/2016

Surpreendente!!!
PQP!!! Que livro fantástico!! Não conhecia o autor e agora quero ler tudo que ele já escreveu. Lindo demais!!
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FrankCastle 05/02/2017

Pulando amarelinha
Na parte superior, parte da capa do livro; na inferior foto real por Tuca Oliveira
Em A cidade & a cidade, China Miéville traz o gênero New Weird, misturando elementos de romance policial e distopia, tingindo essas “roupas velhas” com novos tons, resultando na subversão da ordem de importância entre pano de fundo e trama.

A narração, em primeira pessoa, é feita por Tyador Borlú, detetive da cidade-Estado chamada Besźel. Ele deve investigar um assassinato de uma mulher e, à medida em que a trama avança, surge a hipótese do crime ter relação com a outra cidade-Estado, Ul Qoma.

Não são raras histórias de policiais resolvendo casos que estão fora de sua jurisdição. Eddie Murphy, com sua franquia Um Tira da Pesada, é a prova irrefragável disso. Na pele de Axel Foley policial de Detroit (Michigan), ele vai até Beverly Hills (California)investigar o assassinato de seu amigo.

As cidades americanas citadas estão geograficamente bem afastadas, uma quase na costa leste e outra na costa oeste (imagine o Cristo Redentor, Detroit estaria em Seu cotovelo esquerdo e Beverly Hills na palma de Sua mão direita); a obra de Miéville traz um fator complicador: as cidades não estão próximas, mas imbricadas, ocupando o mesmo espaço físico!

ESQUEÇA A TRAMA, VENHA VER AS CIDADES!

Coloque suas mãos, esquerda e direita, espalmadas no seu campo de visão. Agora cruze-as, como se fosse fazer aquele movimento de espreguiçar: temos aqui uma ideia da disposição territorial de Besźel e Ul Qoma, nesta analogia, mão esquerda e direita, respectivamente.

Continue observando suas mãos nessa posição (ai! deu câimbra!): note como, por exemplo, seu dedo médio direito sai de sua mão direita, mas suas duas últimas falanges estão totalmente em contato com as costas de sua mão esquerda. De forma semelhante, as ruas e terrenos de Besźel e Ul Qoma estão entrelaçados.

Diferente da favela de Paraisópolis (foto no início do post), que possui um muro separando-a de um condomínio de luxo, no universo de Miéville esta foto estaria dobrada verticalmente, deixando condomínio e favela totalmente misturados.

Achou esquisito (weird)? Calma, que ainda tem mais! Lembre-se que estamos falando de cidades-Estado (assim como o Vaticano e Mônaco, por exemplo), ou seja, cada uma representa uma nação, um país diferente . E, uma vez que os territórios são entrelaçados, existem fronteiras separando-as? Sim, mas não se tratam de fronteiras físicas, mas psicológicas e burocráticas.

Desde a infância os cidadãos de Besźel, que frenquentemente cruzam com pessoas da outra cidade, são treinados para ignorar os ulqomanos e vice-versa. Se, por acidente, o habitante de uma cidade olhar diretamente para o de outra deve, imediatamente, desver.

Algo difícil de compreendermos, arrisco dizer que seria semelhante ao que ocorre com algumas pessoas que passam por alguma situação-limite e acabam esquecendo ou distorcendo o que viram. Desver seria algo parecido, mas feito conscientemente e, com o hábito, torna-se automático.

NÃO FAÇA brecha, SENÃO A Brecha VAI TE PEGAR!

Na hipótese de uma pessoa ver algo ou alguém que não deveria (lembrando que a proibição vai além de pessoas, chegando a locais, coisas e animais pertencentes à outra cidade) e, deliberadamente, não desver. O quê acontece?

Quando vamos viajar para um país, em grande parte dos casos, precisamos de um visto. Se alguém entrar em outro país ilegalmente, sem visto, será detido pela Agência de Imigração e deportado para seu país de origem, além de receber outras sanções, como não poder retornar durante um período ou definitivamente.

Em A cidade & a cidade, quando ocorre tal transgressão (chamada de brecha), quem assume o caso não é a polícia de Besźel ou de Ul Qoma, mas sim um terceiro ente, chamado Brecha.

Repare que há uma certa redundância, para não haver confusão: brecha (com b minúsculo) é a transgressão e Brecha (com B maiúsculo) é a organização, que não está vinculada a nenhuma das cidades e que atua apenas nestes casos.

Ainda que, por exemplo, as cidades compartilhem ruas, cada qual deve usar sua faixa específica para, assim como os pedestres devem andar na porção de calçada pertencente à sua cidade.

Imagine dois grandes azulejos, um preto e outro branco. O primeiro representa Besźel, o segundo Ul Qoma. O cidadão besź deve sempre manter seus pés apenas nos azulejos pretos (como peças de xadrez movimentando-se no tabuleiro), da mesma forma, os ulqomanos apenas nos brancos (diferente do que ocorre com as peças do adversário no xadrez).

Agora imagine que um cidadão de qualquer uma das cidades faça o seguinte movimento: coloque um pé sobre um azulejo preto e o outro sobre um azulejo branco! Isso é brecha! Assim com ver cidadãos de outras cidades, sem desver em seguida.

O que a Brecha faz com tais transgressores é um mistério, o fato é que todos a temem, muito mais do que a polícia comum.

Ao longo do desenrolar da trama, o autor se aproveita destes conceitos, usando-os na estrutura das partes que compõem os capítulos do livro. Algo bem prazeroso, que nos permite conhecer as duas cidades, suas diferenças tecnológicas e culturais.

Para citar alguns exemplos: as viaturas da militsya (polícia de Ul Qoma) que possuem luzes que piscam com um “liga-desliga” real, enquanto às viaturas de Besźel utilizam o antiquado giroflex. Na parte cultural, além das vestimentas, existe até mesmo um “vernáculo físico” (modo de andar) próprio de cada cidade! Este último detalhe, me remete ao filme O preço do amanhã, assim como Jack Nicholson em Melhor é Impossível.

Aliás, fico imaginando como seria interessante uma adaptação deste livro para o cinema, modificando alguns pontos. Trocando, por exemplo, estas fronteiras psicológicas por algo como dimensões. O que aconteceria, por exemplo, se alguém ficasse não com os pés nos “azulejos”, iguais ou diferentes, mas equilibrando-se num “rejunte”. Não estaria em lugar nenhum, uma espécie de limbo! Em meio a essa especulação, me lembro do filme O terminal, com Tom Hanks.

A MENTE É COMO UM PARAQUEDAS: SÓ FUNCIONA SE ESTIVER ABERTA

Nos dias de hoje, com muitas pessoas superficialmente politizadas de um lado e extremamente polarizadas de outro, não me surpreende o fato de ver muitos demonstrando genuíno interesse pela obra de Miéville, mas descartá-la e execrá-la em seguida, ao passo que descobrem o posicionamento político do autor.

Simplesmente lamento esse tipo de atitude e digo que se eu também seguisse essa postura, jamais teria lido A Revolta de Atlas, de Ayn Rand, um dos melhores livros que li na vida.

Dentro do livro A cidade & a cidade, não percebi nenhum posicionamento político de forma escancarada. Está mais para um recorte da Europa nos últimos anos, com a crise dos refugiados, radicais separatistas (no livro também temos os radicais unificacionistas, os unifs) e, talvez, a paranoia da vigilância, muito presente já há um bom tempo na Inglaterra.

FICÇÃO REFLETINDO A REALIDADE

Para quem busca algo diferente na forma, a obra traz algo bem original, que nos faz pensar nos enclaves existentes em algumas regiões do mundo; sobretudo nos faz lembrar da realidade presente em Israel e Palestina, com assentamentos desses cercando os daqueles e vice-versa.

Também traz a questão da união versus separação, como no caso do Brexit. E os muros sendo levantados em diversas fronteiras, mostrando um movimento na contramão da tendência de globalização, livre circulação não só de comércio, mas também de pessoas.

TCC…? NORMAS DA ABNT…? :-) :-(

Paras os acadêmicos e/ou apreciadores de estudo linguístico, este livro traz um belo agrado. Ainda que muito possa ter sido minimizado ou perdido, é interessante ver algumas gírias, neologismos criados por Miéville, que deixa a entender que suas cidades fictícias estão situadas no leste europeu.

Quem já cursou ou está cursando alguma graduação, pós, doutorado etc. irá perceber o alto nível de detalhe envolvendo notas de rodapé, referências bibliográficas, siglas como cf., et. al., entre outras. Vale lembrar que tais informações são importantes para a investigação de Borlú e nos mostram o quão interessante pode ser este “diálogo” entre autor e leitor, por meio do texto impresso de um e dos grifos, anotações e post-its do outro.

PERSONAGENS

É preciso dizer que os personagens não são muito desenvolvidos. Ao menos os de carne e osso. Explico: ao meu ver, os personagens principais são as cidades. Você não verá descrições muito detalhadas dos personagens humanos, mas posso adiantar que Dhatt, com seu estilo impaciente e desbocado é um dos meus favoritos:

Borlú: eu gostaria de caminhar; preciso dar uma volta. Está uma noite linda.
Dhatt: Como assim, caralho? Está chovendo.

Os diálogos entre Borlú e Corwi, também costumam ser bem espirituosos:

Borlú: Ela provavelente usava proxies e um cleaner-upper online também, porque não havia nada de interesse no cache dela.
Corwi: Você não faz ideia do que está falando, faz, chefe?
Borlú: Absolutamente nenhuma. Mandei os técnicos escreverem tudo foneticamente para mim […]
Corwi: Então você não entendeu nada dela?
Borlú: Infelizmente não, a força não estava comigo

PONTOS NEGATIVOS

Três pontos me incomodaram de maneira significativa durante a leitura, mas não necessariamente são defeitos.

1º) Diálogos truncados. Sabe quando uma pessoa está relatando algo de nosso interesse, mas fica muito reticente, se confunde, para, depois retoma o relato etc.? Pois bem, isso me deixou bem impaciente em alguns momentos, ainda que fossem características dos personagens, não sei se o autor se aproveitou disso para “enrolar” um pouco. A impressão é aquela de alguém impaciente falando com um gago (nada contra os gagos).

2º) “Barriga”. Em determinado trecho, notei que o autor adotou uma estrutura de capítulos com grande picos no final, mas com seu desenvolvimento bem lento e um tanto enfadonho, lembrando uma técnica que costuma ser muito utilizada em novelas brasileiras e alguns seriados. Felizmente, passado esse trecho, os capítulos seguintes ficam bem mais interessantes.

3º) Show don’t tell. Não vou dar spoilers sobre a trama. Mas próximo do final, não gostei da forma como parte importante da trama é revelada. Soou como algo parecido com Scooby-Doo ao invés do show don’t tell (mostre, não fale). Pesquisando, vi que o uso ou não desta técnica divide opiniões e que muitas vezes, é preciso ponderar o dinamismo da narrativa. Não sei dizer se ficaria melhor se ela fosse mais utilizada, mas fica aqui o ponto mais fraco do livro em minha opinião.

De qualquer forma, A cidade & a cidade, de China Miéville vale a pena não só ser lido mas, se possível, relido (calibre suas expectativas!). Sobretudo pela riqueza de detalhes que podem ser melhor entendidos e explorados numa segunda leitura. Conheci o livro por acaso, lendo artigos publicados por Antonio Luiz (o melhor resenhista de ficção científica do Skoob), desde então fiquei empolgado e agora, finalmente, consegui meu intento. Espero que a editora Boitempo siga publicando mais obras do autor, se possível, com um preço mais acessível.

site: https://medium.com/@7seconds_/pulando-amarelinha-716050e113b9#.e38megfeg
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Xsavier 02/05/2017

Legalzinho
Uma leitura rápida descompromissada sem profundidade mas interessante o suficiente pra entreter até o final. Compensa pra passar o tempo.
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usucapiao 26/03/2018

Excelente obra de ficção
Estranho, intrigante e envolvente. Essa obra me fez lembrar das miríades de pensamentos que surgiam na minha infância ao final de cada filme de ficção científica, as possibilidades infindas de mundos e seres. Livro muito interessante, me cativou do começo ao fim.
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