Dhiego Morais 18/08/2016Rebelde: A pintura selvagem de uma batalha em forma de prosa.Lembro-me da época do lançamento deste livro, em 2014. Titubeei um par de vezes, naquela dúvida cruel de “compro ou não compro”. Há dois anos eu não tinha lido nada do Bernard Cornwell, mas existia a curiosidade. Acabei que não comprei. Este ano, porém, decidi que seria o ano do Bernard Cornwell em minhas leituras, e Rebelde foi um dos títulos escolhidos para a meta de 2016.
“Mas Dhiego, dá uma resumida boa dessa leitura em umas três palavrinhas, por favor?”. Opa, com certeza: “Impressionante. Visceral. Breathtaking” (ou “de tirar o fôlego” — inglês tem suas vantagens rs).
Rebelde é o primeiro livro da série As Crônicas de Starbuck, escrito pelo consagrado autor britânico, Bernard Cornwell. Neste romance de ficção histórica, a trama tem como cenário desta vez a Guerra da Secessão, um conflito civil que rasgou os Estados Unidos no século XIX.
Nem quando eu estudei na escola sobre essa guerra cheguei a me interessar de fato. No entanto, Cornwell possui algum superpoder que atrai a atenção de seus leitores e, principalmente, dos mais novatos, seja pela capa, pelo título ou pela sinopse. Acredito que Rebelde vai além disso, ainda que não tenha o hype que as Crônicas Saxônicas têm, por exemplo. E é na “surdina” que o livro mostra ainda mais potencial.
Rebelde conta a história de Nathaniel Starbuck, um jovem, filho do reverendo Elial Starbuck. Natural de Boston, o nortista chega a Richmond, na Virgínia, sem qualquer perspectiva de um futuro. A razão? Nathaniel largou os estudos de teologia para seguir a vida com uma mulher; mulher esta que o abandona. Então, afastado de sua família, o ianque possui apenas um rumo possível: seguir para Faulconer Court House, um condado na Virgínia sob o comando de Washington Faulconer, cujo filho, Adam, é um amigo de infância.
O livro já começa de uma maneira tensa. Ao contrário do que algumas pessoas poderiam imaginar, Cornwell não optou por narrar os fatos que desencadearam — de maneira sucinta — a Guerra da Secessão, mas sim pelo seu estopim. Logo nas primeiras páginas o leitor já percebe o clima pesado e xenófobo, um clima estritamente separatista, regional e imerso em discursos de ódio e preconceito. Em suma, não há muita tolerância nos meses que antecederam o conflito.
E é justamente neste clima conflituoso que Nathaniel é encurralado e capturado por alguns civis de Richmond. Para piorar, os homens reconhecem o seu sobrenome e sotaque como nortista, além de que fazem a ligação com o reverendo Starbuck. Ali, os sulistas já estavam dando uma lição humilhante nos nortistas viajantes, despejando alcatrão fumegante e penas em seus corpos desnudos. O jovem ianque só é poupado porque Washington Faulconer surge a cavalo e despacha os tumultuadores.
A partir daí a trama se encorpa e fica mais interessante. Faulconer, um “coronel” extremamente rico deseja atuar ativamente nos confrontos contra o Norte, e, para isso, almeja criar a Legião Faulconer, composta por mil soldados de elite preparados para os conflitos mais importantes da União/Federação.
Depois de contar a sua história e deixar claro que não existe a possibilidade de retornar e enfrentar a fúria do pai, Nathaniel concorda em entrar para a Legião, bem como em lutar à favor do Sul como um sulista honorário.
“— Eu tinha esperanças nele — comentou o coronel sentenciosamente. — Mas esses filhos de pregadores são todos iguais. Quando ficam livres da coleira, Adam, eles enlouquecem. Cometem todos os pecados que os pais não podem cometer, não cometeriam ou não ousariam. É como ser criado numa confeitaria elegante sem ter permissão de tocar nos doces. E não é de espantar que mergulhem de cabeça quando ficam livres”.
Nathaniel Starbuck é um personagem bem interessante. O jovem é um nortista que nunca desejou o futuro religioso que o pai desenhou para ele, por nunca ter escolhido aquela Fé, bem como por ter sempre se sentido deslocado em Massachusetts. Dotado de uma série de ilusões e ressentido de tantos fracassos, Nathaniel vê na sua fuga um meio de se provar frente ao próprio pai, demonstrando poder ser um bom soldado. O mais curioso é que a cada atitude irregular que toma, Nathaniel atormenta a si próprio, como se tivesse cometido uma série de pecados, efeito, claro, de uma dura criação no Norte. Além disso, o ianque é cheio de falhas. É esperto, mas influenciável e possuidor de uma forte necessidade de se provar para aqueles ao seu redor. Em alguns momentos, Nathaniel é capaz de uma fúria selvagem, quase irrefreável, e de atitudes duvidosas. “Ah, então ele deve ser apático, quase intolerável, fraco talvez?”. Para alguns, pode ser, mas acho que esse não é o ponto. Eu gostei de Nathaniel por um simples motivo: ele é completamente humano.
Cornwell direciona a trama pouco a pouco para o clímax. A Guerra da Secessão, que dividiu o país entre Norte e Sul, entre abolicionistas e escravagistas, é moldada com primor. Em Rebelde descobrimos como foi fazer parte de um momento histórico cruel pela visão daqueles que mais sofreram, dos que viveram intensamente a fase, dos que respiraram cada segundo de conflito.
Outros cidadãos enfrentam dilemas complicados e merecem bastante atenção. Ethan Ridley, que tem a mão da herdeira Faulconer prometida; os Truslow, Thomas e Sally; Thaddeus Bird, cunhado de Faulconer; os Faulconer, Coronel Washington e Adam; e, por fim, Belvedere Delaney, meio-irmão de Ethan Ridley. Cada um desses personagens tem o seu papel na história.
Bernard Cornwell construiu de maneira brilhante o contexto histórico e, essencialmente, as personagens. Empáticos, odiáveis, amáveis, engraçados, curiosos e dúbios, cinzas. São nas mudanças de ponto de vista e em sua narração em terceira pessoa que Cornwell demonstra mais brilhantismo.
A trama tem o seu clímax numa das Batalhas de Manassas. Eu já havia lido outros três livros do Cornwell, mas, sinceramente, nunca, em toda a minha vida de leitor, eu li uma descrição de batalha tão real e que evocasse tão profundamente todos os sentidos. Pode-se sentir o cheiro da pólvora e do sangue, o odor pútrido da morte; os gritos de agonia dos soldados mutilados, dos corpos destroçados que explodiam com os tiros dos canhões; o choro das mulheres; a fúria selvagem daqueles na linha de frente da batalha; os brados animalescos dos sobreviventes durante a amputação de seus membros; a visão dos corpos baleados, rasgados, divididos, explodidos... irreconhecíveis. O caos da batalha.
“— Por que está lutando por nós, Boston? Essa luta não é sua.
[...] — Porque sou um rebelde [...]”.
Rebelde é Cornwell em sua melhor forma. Forte e visceral. A pintura selvagem de uma batalha em forma de prosa.
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