Camille.Pezzino 26/03/2021
RESENHA #150: À AMANTE INOCENTE E FOGOSA
Uma das obras mais famosas do cânone brasileiro, Dona Flor e seus dois maridos é um livro que traz tanto um humor ácido quanto uma crueza da realidade baiana da década de quarenta, tão conhecida por seu autor, Jorge Amado. Flor, dividida entre seus dois maridos, deve decidir entre as duas facetas que carrega: a inocente cozinheira ou a fogosa amante.
Contudo, ser uma amante fogosa não está nos planos de nenhuma mulher de “bem”, pelo contrário, naquele período histórico, as boas donas do lar eram recatadas. Ao menos, era o que a sociedade cristã patriarcal pregava sobre todas as mulheres. O desejo feminino é colocado em última instância, considerado impuro e ilegítimo diante da esfera do masculino.
Assim, culturalmente rico e repleto de críticas sobre uma sociedade hipócrita brasileira, o livro de Amado desenvolve muito bem seus personagens, mesmo que eles sejam estereotipados e caricatos. Essa caracterização é proposital, justamente para que diversos modelos sociais brasileiros sejam abarcados em suas mínimas medidas.
Como o bem e o mal, o homem é dividido entre o desejo daquilo que não pode e o desejo de ser bem visto socialmente. Flor sofre esse dilema, sendo a sua dúvida o cerne narrativo, entre aquilo que quer e aquilo que foi ensinada a querer. Nessa ambiguidade, que vai sendo desbravada até o final do livro, o autor explora a dualidade do amor, a dualidade do indivíduo e a própria dualidade da sociedade, mas, principalmente, a dualidade da mulher e dos seus amores.
Para além da crítica social explícita, Amado metaforiza alguma dessas relações sociais através de um realismo mágico. Vadinho, marido morto e revivido de Flor, é invisível, tanto por falta de matéria/corpo quanto pelo fato de ser um homem improdutivo socialmente, mesmo antes de vir a falecer. Teodoro, por sua vez, metódico e produtivo, é o marido visível da relação construída a três. Sua produtividade, no entanto, faz com que ele seja cego às relações sociais criadas entre ele e Flor, bem como entre ela e o marido morto e invisível.
Entretanto, por mais rico cultural e criticamente que seja Dona Flor e seus dois maridos, a narrativa atravessa alguns percalços. O primeiro de todos é a lentidão das informações, já que o autor optou por trazer inúmeros flashbacks do passado para explicar o presente. Nessa narrativa in medias res, ou seja, a história começa no meio para ir ao início e depois ao fim, temos uma história densa por conta desse passado que sempre volta para atormentar tanto o leitor quanto Flor. Ainda que faça ser mais rico, pesa no decorrer da leitura.
Há, como segundo percalço, também um relacionamento extremamente abusivo e tóxico entre Flor e Vadinho, o que na época era comum. Só que, com o olhar de hoje, essa relação se torna muito mais incômoda do que era naquele período. Por mais que a relação com o marido visível não seja também tão agradável aos olhos, a experiência de Flor com o morto é feita e descrita propositalmente para fazer com que você revire sua alma e veja como aquilo é errado. Isso faz com que o texto se arraste mais e mais, embora a linguagem do autor seja leve, oral e com uma caracterização bem popular, considerando o intuito do escritor de popularizar a sua crítica ao invés de mantê-la só para uma elite.
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