Craotchky 20/05/2019Um breve olhar e miúdo aperitivo"A felicidade é bastante cacete, assaz maçante, em resumo: uma aporrinhação..."
Incrível como a prosa de Jorge Amado exala naturalidade. Durante a leitura eu tive a impressão que este baiano não precisava pensar para escrever, bastando colocar as palavras no papel conforme viessem tamanha naturalidade da narrativa. O resultado é uma história que parece muito, muito, muito real. Tão gostosa, sensual e por vezes cômica (dei boas risadas) é a linguagem de Jorge Amado, que em certo momento percebi não estar tecendo conjecturas sobre o que iria acontecer na história, isto é, para onde a história estava indo, tamanha imersão no momento presente da leitura. Talvez Amado seja o que chamamos de Exímio contador de histórias, um romancista por excelência, em suma.
Aos meus olhos destacam-se neste livro dois elementos: a linguagem ( ou seja, a narrativa, a escolha das palavras nas descrições) e as(os) personagens. Eis alguns membros da fauna de personagens do livro (Na tentativa de exemplificar o tom cômico e a linguagem de Jorge Amado resolvi intercalar abaixo descrições extraídas do livro):
Florípedes, ou dona Flor é desde sempre mulher séria, mansa, recatada, composta, impoluta. Dona Flor é
"pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a cor bronzeada de cabo-verde, [...] olhos de requebro e lábios grossos um tanto abertos sobre os dentes alvos". Ou ainda
"morena e rechonchuda, servida de carnes, com uns olhos de azeite e uma pele cobreada, cor de chá, formosa de ancas e de seios". Esposa fiel, professora em sua escola de culinária, dona Flor é o exemplo de mulher dona de casa.
Vadinho, primeiro marido de dona Flor, morre assim que começa o livro. No carnaval Vadinho
"caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, exceto trabalhar". Ele
"estava sambando, numa animação retada, e sem avisar a ninguém, caiu de lado já todo cheio de morte".
"Era largamente popular, [...] benquisto sobretudo onde se bebia, jogava e farreava". Vadinho é libertino, boêmio, jogador inveterado de jogos de azar, trambiqueiro, além de ser bom de lábia, conquistador, don-juan, finório sedutor de moças e casadas, sábio em matérias de prazer. É também
"pobre, sem vintém, funcionário chinfrim, picareta e facadista, cachaceiro".
Dona Rozilda é viúva e
"mãe de dona Flor, nascida para madastra". Ambiciosa, dona Rozilda é uma baiana destestável até
"porque a natureza de dona Rozilda era mesmo consagrada a infernar o próximo. Quando não estava contrariando alguém, sentia-se vazia e infeliz". Gil, seu falecido marido e pai de dona Flor, logo que pôde partiu desta para melhor. Sim pois,
"fosse o que fosse a esperá-lo nos mistérios do além, qualquer coisa seria melhor se comparada à vida em comum com dona Rozilda". Seu Gil, "Concluiu de nada adiantar sua sacrificada labuta, aproveitou uns dias de inverno mais úmido para adquirir uma pneumonia barata e emigrou para o astral. Fosse outro e poderia ter escapado, ter vencido a doença, pouco mais do que uma gripe. Gil, porém, estava cansado!, não se dispunha a esperar doença mais séria e grave. Além do mais, não tinha ilusões: doença de qualidade, importante, moléstia da moda, cara, falada nos jornais, não chegaria para ele, o melhor era contentar-se com sua mesquinha pneumonia. Assim o fez e, sem se despedir, faltou com o corpo, descansou." Nas palavras de um dos genros: "Aquilo não é uma mulher, é uma quarta-feria de cinzas, termina com a alegria de qualquer um".
Doutor Teodoro, o segundo marido de dona Flor, para resumir é essencialmente o oposto de Vadinho.
A fauna não termina por aqui, há ainda as comadres bruacas, seus esposos, os notívagos amigos de Vadinho, as mulheres da vida (mais que amigas de Vadinho), as figuras esotéricas, as pessoas da alta sociedade baiana...
E embora não tenha escrito nada sobre o enredo, sobre a ambientação, ou ainda sobre a questão do machismo presente na obra, bem como os hábitos cotidianos e religiosos característicos da Bahia, por já me alongar em demasia paro por aqui. Espero ter dado alguma ideia da linguagem e tom de Amado neste livro. Saio, por fim, satisfeito com este texto e com esta leitura.