spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 18/04/2020
Onde estiveres de noite
Livro da autora Clarice Lispector publicado em 1974. São ao todo 17 contos, crônicas e outros textos que exploram as dores e o sofrimento de diversas formas no cotidiano de qualquer pessoa. As narrações trazem uma ponta de angústia, em situações cômicas, bizarras ou trágicas mesmo. São textos instigantes que trazem muito da complexidade da alma humana.
A procura de uma dignidade- a Sra. Xavier está perdida em si mesma, tentando procurar a saída. Ela nem sabe como entrou lá, mas o fato é que está dentro do Maracanã, procurando o local de uma conferência da qual vai participar. Não consegue encontrar a saída. Pede informação mas ninguém consegue ajudá-la. Depois se dá conta de que o evento não é no Maracanã, e sim próximo ao estádio. Por que ela se enganou? Nem ela mesmo sabe. Tomou um táxi e não sabia ao certo o endereço. Porém acabou encontrando. Ao encontrar, já não sabia o que estava fazendo ali. De que lhe servirá aquela conferência? Foi embora. Não sabia dizer ao motorista ao certo o endereço da própria casa. O marido estava viajando, a Sra. Xavier estava só. A senhora de 70 anos ainda não estava preparada para aquela idade, para todas as mudanças internas. Por fim, teve o devaneio de ter em seus braços o galã Roberto Carlos. Viveu uma montanha russa de sensações, encarou a realidade e ela era um tanto desesperadora. Impossível ter em seus braços aquele amor platônico, ter a vida que ela gostaria ou já teve. Em um ato de angústia maior, interrompeu a própria vida para definitivamente achar a saída.
A partida do trem- Ângela Pralini e Dona Maria Rita viajam juntas no mesmo trem. A primeira é uma moça mais jovem, embarca para fugir de seu romance com Eduardo, a segunda uma senhora que acaba de se despedir da filha e está fazendo viagem para ir morar com o filho em uma fazenda. É meio melancólica com a vida. As duas têm um breve contato durante o trajeto e, no caminho, ambas vão refletindo internamente sobre a vida e o que vão enfrentar no destino. A velha acaba pegando no sono. Ângela Pralini chega a seu ponto de chegada. Desce imaginando qual será a reação quando a outra acordar e não lhe ver mais no trem. Ninguém sabe se adormeceu por confiança na nova amiga.
Seco estudo de cavalos- o texto, como o próprio título sugere, traz um estudo mais cru mesmo sobre os equinos, uma observação sobre características, comportamento, função social e a relação com o humano. É interessante a alusão que faz entre o animal e o homem. São vários títulos com observações distintas sob diversos aspectos. É interessante como o animal, que é um verdadeiro símbolo de liberdade, foi escravizado pelo homem, que se serve dele desde a antiguidade. Como esse ser tão livre se deixou dominar de tal maneira.
Onde estiveres de noite- texto surrealista. As personagens (malditos), durante o período da noite, participam de um ritual, uma espécie de procissão, com o intuito de adorar um ser andrógino chamado Ele-ela. Mas, ao passo que lemos, percebemos características muito mais profanas que religiosas nessa procissão. Coisas muito estranhas acontecem nesse processo, como o cão que gargalha no escuro, o anão que dava pulinhos como um sapo e levitava e um leite preto que saía dos seios das mulheres que acabaram de ter filho. Tudo isso era absolutamente natural naquele universo.
O relatório das coisas- é um texto que fala sobre a percepção do tempo, de como ele é implacável e muitas vezes nos domina, somos escravos dele. Inventamos o relógio para dividirmos melhor o tempo, e ele se tornou uma coisa monstruosa. Ela usa um despertador Sveglia para falar melhor sobre isso. Algo que todos os dias, no mesmo horário, desperta para acordá-lo e deixá-lo inteiramente à disposição do tempo. Sveglia é o regulador do tempo, o dono da dona.
O manifesto da cidade- texto bem curtinho que fala sobre a relação que temos com a cidade onde moramos. Diante da louca correria, do tempo que corre alucinado, até reclamamos da cidade, mas nunca paramos para contemplá-la: ?Por que não tentar neste momento, que não é grave, olhar pela janela? Esta é a ponte. Este o rio. Eis a Penitenciária. Eis o relógio. E Recife. Eis o canal. Onde está a pedra que sinto? a pedra que esmagou a cidade. Na forma palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada?.
As mariganças de Dona Frozina- viúva que vivia com seu dinheirinho mirrado, mas suficiente para comprar o leite de rosas do qual tanto gostava. É católica fervorosa. Ficou viúva aos 29 anos e, de lá para cá, nada de homem, sem decote e sempre com mangas compridas. Está na casa dos 70, ótima mãe e avó. Será que ela é como Dona Flor? Ela rechaçou a comparação descabida. Teve um sonho esquisito, que Cristo, do Corcovado, estava de braços cruzados, farto. Ela cochilou no meio da reza. E o que é Manigança? Talvez a chave para se descobrir segredos mais recônditos da personagem. O texto se encerra com uma frase intrigante: ? D. Frozina quando era pequena, lá em Sergipe, comia acocorada atrás da porta da cozinha. Não se sabe por quê.
É para lá que eu vou- na sequência do livro, uma série de pequenos textos. Neste, Clarice fala sobre o ?instante a seguir? com o qual sempre nos deparamos na vida. Ele é quase sempre incerto, e é quase uma consequência do que veio anteriormente.
O morto do mar da Urca- a moça está na casa de uma costureira provando um vestido amarelo que vai usar no sábado. Alguém chama a atenção para a janela, do outro lado, no mar da Urca, alguém morre afogado. A moça começa a fazer uma breve reflexão da vida, de como a morte pode ser uma casualidade, como a daquele rapaz. Como podemos encontrá-la na próxima esquina. Mas como ele foi nadar justo naquele lugar perigoso? Só se deve morrer de morte morrida, nunca de desastre. Ela pede proteção aos seus para que nunca aconteça. Mas e o rapaz? Mas logo ela voltou-se para o vestido, pois a costureira questionava se era para apertar mais na cintura. Ela disse que sim, que cintura é para se ver apertada. Mas estava atônita. Atônita no seu vestido lindo.
Silêncio- como o próprio nome sugere, uma boa reflexão sobre o silêncio. Aquele vasto silêncio da noite na montanha. Que tentamos em vão trabalhar para não ouvi-lo. Clarice vai descrevendo quão desesperador ele pode ser: ?É terrível. Inútil é querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa...?.
Esvaziamento- Clarice narra deste curto texto a curiosa história de uma amizade sincera. Mas a sinceridade é apresentada de uma outra forma pela autora. São dois amigos que não se conheciam há muito tempo, mas ficaram tanto tempo sem uma amizade que a viveram de forma intensa no princípio. Eles dividiam todas as questões e angústias. Mas com o tempo, quando já trataram de todos os assuntos e questões, essa amizade ficava sem assunto, se esvaziava, parecia não haver mais comunicação entre eles. Era algo desconfortável. Tempos depois, resolveram dividir o mesmo apartamento. Os assuntos da mudança parecem ter renovado o gás dessa amizade. Mas novamente o tempo se passou e os dois pareciam ainda mais sozinhos mesmo morando juntos. Porém, sempre que surgia um fato novo, os dois se uniam para tratar dele e parece que se reconectavam. Até que tudo novamente se esvaziou. A pretexto de férias, os dois viajaram, cada um para um canto, foram visitar os familiares. Despediram-se com um aperto de mão no aeroporto e com a convicção de que nunca mais se veriam, a não ser ocasionalmente. E mais que isso, não queriam se rever, mas continuavam amigos, amigos sinceros.
Um tarde plena- uma moça pega o ônibus, vai sentar-se no banco de trás e ao lado dela há um senhor gordo com um saguim no colo. Um bichinho de estimação quase idêntico a um rato. Qual não foi o susto que ela não tomou? Aos poucos, foi controlando a repugnância e até achou um tanto simpático o animal, que começou a se movimentar e chegou a pular no colo dela. Desajeitada, não sabia o que fazer, mas ganhou a simpatia dos outros passageiros. O saguim foi para a janela e colocou a cabecinha para fora, para espanto de quem vinha dos outros ônibus. Quase ocorre uma tragédia, pois um caminhão tentou ultrapassar o ônibus e quase espreme o bichinho. Atrasada, a mulher acabou pegando um táxi e imaginou que nada mais de curioso ocorreria com ela durante um bom tempo após aquele episódio. Porém naquela tarde mesmo várias outras coisas aconteceram.
Um caso complicado- e bota complicado nisso. Uma jovem faz tratamento com um médico. A mãe dela é amante desse médico, e o pai tem também um caso com a esposa do médico. A moça, que é noiva, tem complicações de saúde e teve que amputar a perna. Com isso, o noivo queria terminar com ela. Os pais pediram para que ele não o fizesse, para que ela se sentisse amada, já que não tinha mais tanto tempo de vida. Ela de fato faleceu e ele casou-se com outra, que por ciúmes, quase o matou. Porém inacreditavelmente acabaram restando. Enfim, um caso de fato complicado. Clarice encerra o texto de forma interessante: ?O que fazer desta história? Também não sei. Dou-a de presente a quem quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes, me dá enjoo de gente. Depois passa e fico de novo toda curiosa e atenta?.
Tanta mansidão- a personagem é uma camponesa que está não exatamente em um estado de torpor, mas em uma maneira mais leve e mais silencioso de existir, na janela, observando a chuva. Vive uma alegria mansa, um pouco desnorteada, como se o coração lhe tivesse sido tirado, no lugar, uma súbita ausência onde havia um órgão banhado na dor e na escuridão. Não agradece a Deus pela chuva, pela natureza, por estar viva. Assim como a chuva não agradece por ser pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso o que pode se chamar de estar vivo, não mais que isto, mas vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.
As águas do mar- o mar cura dores e angústias. Também pode ser a solução para os mais desesperados para encerrar o sofrimento de forma mais radical. São seis horas da manhã, a praia está deserta, há o encontro do mar, a mais inteligível das existências não humanas, com a mulher, o mais inteligível dos seres vivos. Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar. Vai entrando, mergulha naquela imensidão que os olhos não alcançam. Mergulha de novo, bebe a água, sente o sal. Depois caminha na água de volta para a praia. Às vezes, o mar impõe-lhe resistência e a puxa de volta para trás. Mas ela avança dura e áspera. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo quando quiser. Sabe que está brilhando de água, sal e sol.
Tempestade de almas- texto bem curtinho em que Clarice traça em algumas linhas reflexões sobre acontecimentos, sobre o que é a vida, como funcionam as coisas: ?Ah, seu eu sei...não nascia. A loucura é a vizinha da mais cruel sensatez. Ela vai misturando pensamentos, conceitos, em dado momento, faz uma menção interessante sobre a cadeira, dizendo que não poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento. Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou um maior conforto para o seu corpo. O tempo passou e nunca mais ninguém prestou atenção na cadeira, pois usá-la é automático. Ela encerra dizendo que terá de parar não por falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que não escreveu, não se usam publicar em jornais.
Vida ao natural- no último texto, Clarice nos apresenta uma mulher que está em uma casa no Rio onde havia uma lareira. Chovia bastante, a lareira estava acesa. O fogo piscava para ela e para o homem. O homem atiçava o fogo na lareira. Não era missão dela, tinha o seu homem para isso, então ele que cuidasse de manter a chama acesa. Uma mão dele cuida do fogo, a outra está livre, ao alcance dela. Ela sabe e não a toma. Até quer, sabe que quer, mas os sentimentos dela nunca duram muito. O que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. O fogo arde, flameja. E ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem. E ao prendê-la nas suas, ela doce arde, flameja.