Melissa 16/09/2023
Uma contradição entre a história e a visão focada no belo...
Não há hoje no Brasil, para além dos clássicos, e salvo algumas autoras e autores engajados, um número considerável de romances conhecidos que retratam o passado histórico que nos pertence enquanto brasileiros, em benefício da construção de uma identidade cultural por meio da memória coletiva, que tem em sua essência uma história comum. Entretanto, é exatamente isso que Um Poema para Bárbara propõe ao leitor e, de fato, entrega; ainda que não seja perfeito e, sim, uma contradição entre cuidado histórico e retrato cuja visão foca apenas no belo, no heroico. Essa obra de tamanha disparidade puxa o legente pela mão, e o convida a desvendar mais da nossa gênese.
Não será exagero afirmar que Monica Sifuentes trouxe nesse livro uma abordagem histórica magnífica: ela não se atém a paisagens ou passa os marcos históricos de forma solta, mas sim traz toda informação bem costurada no enredo, que se passa tanto em Portugal ? principalmente na primeira parte do livro, que achei arrastada, não por essa causa ? como em Minas Gerais, contrastando metrópole e colônia, em uma linguagem que também resgata a época. Podemos acompanhar a transição da mentalidade do protagonista, Inácio Alvarenga, um personagem histórico, de boêmio a "inconfidente", ao passo que estão sempre presentes inúmeras referências que foram importantes para a história do país colonizador, como Pombal, e para a América portuguesa, como Aleijadinho, além de ícones da literatura luso-brasileira ? Cláudio e Gonzaga ? e, principalmente, a presença de Bárbara Eliodora como mulher à frente de seu tempo, cujos ideais possivelmente influenciaram na Inconfidência Mineira, ao passo que se desenrola o romance com Inácio, o que faz com que a carga historiográfica não fique pesada ou torne o livro maçante ? ele o é no começo devido à representação da vida bon-vivant de Alvarenga. Sem comentários.
Assim, a história de amor dos dois, junto aos poemas, as motivações, os sonhos, pincelam a obra com idealismo, junto às ideias de insurreição a Portugal, e certa sensibilidade romântica, ora bem-vinda, ora forçada. Uma paixão doce, terna e quase sublime é a de Bárbara e Inácio, porém não consegui me deixar cativar verdadeiramente pelos dois. Os heróis em alguns momentos pareciam quase personas: previsíveis, clichês. Creio que cumpram o papel de personagens históricos, pouco explorados subjetivamente, porém representantes de grandes figuras da época, borrando os limites entre ficção e realidade, o que permitiu a Sifuentes desenvolver a relação dos dois, porém caminhando pelo o que já diziam os registros, ainda que explorando suas emoções.
Isso por si só já demonstra a contradição do livro, escrito em 2015, se passando no século XVIII, lido no XXI, por leitores que esperavam personagens anacrônicos, transportados de nosso tempo para o Brasil Colônia, lutando pelos direitos femininos, pela abolição da escravatura, e possuindo uma mentalidade moderna. O que me causou desconforto foi exatamente isso: esperava esse tipo de clichê, e me frustrei com o realismo. Afinal, o casal inconfidente discutia ideais como liberdade e igualdade, advindos do Iluminismo, mas não libertaram seus escravizados ? injusto dizer que não pensaram nisso, pois Bárbara pensou, pois Bárbara era uma mulher revolucionária, mas nada disso aconteceu. Nota-se que isso não é ruim para a obra, não diminui seu valor, já que o que há é um retrato duro e mais próximo da realidade da época.
Entretanto, mesmo compreendendo isso, não consegui me conectar completamente com eles, ou com a obra, que foca apenas no belo idealismo do período. A priori, sei que a Conjura Mineira foi um movimento de elite, já que os principais envolvidos eram mineradores que tinham seus interesses com uma separação. Ainda assim, senti falta de gente retratada na história ? afinal, aurea mediocritas, que é um tópico do movimento literário que faz referência à simplicidade da vida do povo do campo, pediria por ao menos alguns parágrafos de descrição. Não digo que esse livro devesse cumprir um papel de "guia histórico", o que é muito pouco perto do seu real propósito, mas confesso que senti falta de mais representações.
Para além da situação supracitada, a crítica à barbárie da escravidão e dizimação indígena é insuficiente, a primeira sutil, a segunda praticamente inexistente. A impressão que temos é de que a escravidão não foi tão dura, ou que naquela época fosse comum uma relação mais amena entre senhor e escravizado, imersa em romantização, pois essas são as únicas descritas, o que caem no perigo de serem pensadas como a regra, e não as exceções. Pode-se supor, também, que os jesuítas apenas catequizavam os indígenas, pois não são aprofundadas as condições de vida desses povos que foram sumindo e sendo apagados de nossa "história conjunta". Desse modo, a obra de abordagem histórica densa e que foge aos anacronismos do gênero também falha na representação do contexto.
Nada mais contraditório, Um Poema para Bárbara provoca emoções e sensações das mais diversas no leitor: do gosto ao desgosto, do desgosto ao gosto, ora arrastado, ora viciante, angustiante, cativante e perturbador, brincando com fenômenos como o sonho, a idealização e, também, a traição, o egoísmo e a vaidade ? vilões de todos os tempos. Essa obra deixa uma provocação: a de voltar no passado para reler nossos caminhos e valorizar o que foi conquistado a duras penas. A história de amor que ajudou a escrever a história do Brasil, embora possua suas contradições, de fato não deixa de ser um romance impactante, que traga, com efeito, o leitor para o passado e lhe devolve um pedaço dele, para ser relido e absorvido como substância tal que nos remodele.