Fernanda631 27/12/2022
O talismã
O Talismã e foi escrito por Stephen King e Peter Straub e foi publicado em 8 de novembro de 1984.
A narrativa acompanha a jornada de Jack Sawyer, um menino de doze anos que vive junto de sua mãe Lily. Os dois decidiram fugir do assédio de seu tio Morgan Sloat, que ficou responsável pela fortuna da família após a morte de Phil, o pai de Jack. Enquanto eles passam algum tempo em um balneário em New Hampshire, sua mãe vai ficando mais e mais convalescente devido a um câncer que a afastou de sua vida como atriz de filmes B. O garoto vive extremamente angustiado, pois a mãe está padecendo de um câncer terminal.
Mãe e filho tentam levar uma vida tranquila, mas Jack acaba se encontrando com um misterioso zelador o homem chamado Speedy Parker, que toma conta de um parque de diversões próximo ao hotel.
Speedy diz a Jack que é possível ele curar sua mãe, mas, para isso, ele vai precisar do poder de um talismã, um artefato poderoso que só existe em uma dimensão paralela, um outro mundo chamado de “Os Territórios”. Inicialmente, Jack não acredita em Speedy, mas quando ele toma um suco que o leva até este outro lugar, ele vai descobrir um local inacreditável e uma rainha (doente também) que possui uma incrível semelhança com a sua mãe.
Os Territórios, habitada por duplos de pessoas da nossa dimensão. Nesse mundo, existe um poderoso objeto mágico conhecido como o Talismã, algo que pode ser a chance de Jack de curar sua mãe de acordo com o zelador. Tendo a capacidade herdada do pai de viajar entre as dimensões, o menino parte em uma viagem em busca do talismã, mas o inescrupuloso sócio do falecido pai de Jack também conhece a existência dos Territórios, e pretende usar o talismã para os seus próprios fins.
Jack Sawyer é um protagonista incrível. Além de ser especial por ter a habilidade de transitar entre mundos, tudo o que ele aprende e enfrenta nesse percurso vão testar sua resistência ao máximo, e é exatamente essa experiência que o torna mais forte. Embora ele seja muito corajoso, há algumas situações que o deixam com muito medo, mas ele não pensa em desistir jamais.
Ao mesmo tempo em que Jack passa por provações que até mesmo um adulto teria dificuldade de encarar, ele ainda mantém um olhar deslumbrado sobre as coisas ao seu redor, típico de uma criança. Enquanto ele demonstra uma sabedoria e esperteza acima do normal, ele também é um garotinho que deseja correr para os braços da mãe e esquecer todos os problemas. Isso faz dele uma figura complexa e com diversas camadas de profundidade.
O Talismã configura-se como uma aventura infanto-juvenil de fantasia bastante tradicional (ainda que tenha passagens bastante sombrias). Este é o primeiro romance escrito pelos dois autores King e Straub sendo produzido em parceria, mas para esse tipo de processo é preciso que os dois autores estejam muito bem afinados com o estilo um do outro Uma coisa muito legal nos livros de King é que vemos pessoas normais tendo que lidar com problemas fantásticos e aceitando o fantástico aos poucos.
A narrativa é em terceira pessoa, onisciente em que o autor se permite passar por vários pontos de vista distintos: o de Jack, o de Morgan e o de Lily, são exemplos. Os autores colocam os personagens narrando um fato sem grande importância para o desenvolvimento da narrativa, mas que em alguns casos, serve para dar nuances para estes personagens. O problema, entretanto, surge quando é aberto um flashback para nos narrar este fato, quando ele já havia sido totalmente explicitado antes. Usado mais de uma vez, este artifício acaba soando extremamente redundante e desnecessário, ponto negativo, contudo não estraga a obra.
O Talismã tenta ser uma historia épica, mostrando a jornada de Jack tanto pelos Territórios como pelos Estados Unidos, mas a verdade é que a história não precisava se estender o tanto que se estendeu, contudo volto a repetir que isso também não estraga a obra.
Apesar dos pesares, O Talismã não chega a ser um livro ruim. Só que é desnecessariamente um pouco mais longo e irregular do que deveria ser. Mais de quinze anos depois, os dois autores voltariam a se reunir para escrever uma sequência para este livro, intitulada A Casa Negra, e conseguindo resultados bem melhores, mas isso já é outra história.
Por outro lado, não se pode negar que os dois autores criam uma mitologia fascinante envolvendo Os Territórios e a relação existente entre essa dimensão mágica e a nossa, criando paralelos bem interessantes entre os perigos fantasiosos que o protagonista enfrenta nos Territórios, com os perigos mais terrenos aos quais é submetido quando está nos Estados Unidos, como pedófilos de estrada e guardas abusivos de reformatório.
Mesmo sendo um livro de autoria compartilhada, King e Straub nunca definiram exatamente qual foi a contribuição de cada um para o enredo. De qualquer forma, fica evidente que O Talismã faz parte do multiverso de Stephen King, o qual gira em torno da Torre Negra. A jornada em si se assemelha muito à procura do pistoleiro Roland Deschain pela Torre, mas aliado a isso há o conceito de mundos alternativos que influem uns nos outros.
A geografia do Mundo Médio (King nunca se preocupou em criar um mapa disso), Roland caminha pelas fronteiras e regiões inexploradas do Mundo Médio enquanto Jack permanece dentro de um espaço mais "organizado" conhecido como os Territórios.
Trata-se de um imenso lugar que se assemelha a um reino nos moldes do período feudal, administrado por uma série de lordes. O contato com o mundo terreno fez aparecer uma série de espectros dos EUA nos Territórios como as estações, as estradas.
Outro conceito importante de destacar é o dos Duplos. Aí entra um pouco em discussão a idéia de multiverso que King emprega em suas obras. Porque segundo os seus mundos, cada pessoa tem um duplo (ou triplo, ou quádruplo) nos mundos que fazem parte do Mundo Médio. O Território seria apenas uma pequena fração disso. Por exemplo, a mãe de Jack, Lily, tem um duplo que ocupa uma função de poder nos Territórios. Geralmente, coisas que acontecem com os Duplos se refletem de alguma forma sobre os humanos do mundo terreno.
Jack Sawyer é construído como um protagonista simpático, mesmo que não exatamente profundo. O que impede Jack de se tornar enfadonho, é que diferente de boa parte dos protagonistas de histórias infanto-juvenis que giram em torno da narrativa do escolhido, o garoto é um personagem que comete erros, e não necessariamente é bom em tudo aquilo que se dispõe a fazer. Sua jornada em busca do talismã é também uma jornada de amadurecimento, com seus pontos de virada estabelecidos de forma inteligente por King e Straub.
Os vilões aqui, Morgan e Osmond, são um caso especial, pois embora sejam sádicos e oportunistas, são bem construídos e com motivações que realmente causam impacto e medo. A forma como usam e manipulam as pessoas através de suas fraquezas é doentia e cruel.
O personagem de Morgan Sloat é outro daqueles personagens memoráveis que King gosta de criar assim como Jack Torrance ou Annie Wilkes. Um personagem ganancioso que começa como um homem pequeno que, quando se depara com o poder, se torna manipulador e cruel. Phil é a pessoa que apresenta os Territórios para Morgan. Se Phil tinha uma visão de explorador, Morgan queria aproveitar o contato com o Mundo Médio em seu próprio benefício: "como eu posso lucrar com isso?".
Mas, é claro que Morgan logo vai descobrir que brincar de travessia dos mundos não é tão simples como parece. E por mais que os benefícios sejam incríveis, pouco a pouco podemos estar nos desligando de nossas essências. Morgan é um personagem mesquinho, daqueles que sabemos não existir nenhuma forma de redenção ou arrependimento. Ele é porque é, e gosta de ser assim.
Os coadjuvantes desempenham um papel importante nesse arco de amadurecimento, com especial destaque para Lobo, um garoto lobisomem que se torna grande amigo de Jack em sua jornada pelos Territórios. Lobo é um dos melhores, se não o melhor, personagem desse livro. Ele é carismático e seu espírito protetor acaba fazendo com que ele seja aquele melhor amigo que sempre dá o ombro e estende a mão pra ajudar o outro. Ele é uma das melhores representações de lealdade e amizade verdadeira.
A escrita do King, diferentemente de Straub, segue à sua própria maneira. Porém, eu preciso dizer que O Talismã é um livro bastante descritivo que lembra em alguns momentos O Senhor dos Anéis pela carga de descrições. Isso é o que torna o livro mais longo do que o habitual e pode cansar o leitor em algum momento. O curioso é que King não esconde o que o influenciou a escrever, fazendo até uma interpretação de alguns seres criados por Tolkien em O Senhor dos Anéis. Claro que a visão de King é bem mais aterrorizante e menos fantástica.
Desenrolada ao longo de três meses, entre o fim de setembro e meados de dezembro de 1981, a narrativa apresenta tempo primordialmente cronológico, embora o tempo psicológico tenha uma forte importância, sobretudo nos ditos interlúdios. Trata-se de um recurso usado para se recuar no tempo e explicar determinados detalhes da História que acabam por dar profundidade à mesma ao correr da trama.
É o típico enredo de busca, no que poderia ser chamado de “jornada do herói”, quando somos apresentados ao protagonista e cujo os estágios da história cumprem quase que religiosamente aquilo que a jornada do herói propõe.
Somos apresentados por Stephen King ao já conhecido narrador em terceira pessoa, onisciente, e nesse caso nada neutro como já havia mencionado. Através dele e da condução da própria narrativa somos inteirados dos diversos acontecimentos que permeiam a história de Jack Sawyer, sua família e da ampla gama de personagens, uma constante nos livros de Stephen King.
O Talismã mostra outra qualidade do King: estamos na moda dos personagens cinza e dos anti-heróis, mas eu sinto falta às vezes dos personagens puramente malignos. Daqueles que somos capazes de entender pela simplicidade de sua natureza.
O Talismã é um dos romances que mostram como King enxerga o gênero fantástico. Isso é o mais próximo de fantasia que vamos chegar ao lado do mestre. Ou seja, ele é um dos autores que se aproximam bastante também do gênero de dark fantasy, décadas antes do gênero receber seu nome.
Peter Straub está envolvido na história e com isso vamos ver o quanto do autor está presente na narrativa. Para quem não conhece o autor, basta lembrar que ele foi o responsável por Ghost Story, considerado um clássico das histórias de fantasmas.
Straub gosta de lugares que possuem poderes sobrenaturais. Ele trata esses lugares quase como pessoas vivas. A gente consegue ver isso em alguns momentos como o hotel Alhambra onde Lily e Jack estão no começo da história. Se trata de um lugar estranho desprovido de humanidade onde os atendentes quase não são vistos. O rosto dos personagens que trabalham no local é desprovido de sentimentos e até a fala deles é estranha. Mais para a frente veremos o Hotel Negro, um elemento de ambientação que lembra bastante o tipo de história que Straub gosta de contar.
Agora reunido esses dois autores juntos com seus estilos de escrita bem definidos teremos a obra O talismã, que mesmo sendo o primeiro trabalho dos dois em parceria é um bom livro.
Acredito que muitas pessoas irão gostar, principalmente pela mitologia criada e pelos personagens que iremos amar como exemplo Jack e o lobo e outros odiar como é o caso de Morgan Sloat.
Recomendo a leitura como de todos os livros do mestre King.