Pietra Galutty 01/10/2022
A poética dos meus estúpidos glóbulos vermelhos - ou é úlcera ou é amor
Matilde Campilho (1982-), escritora e poetisa portuguesa, em sua obra de estreia Jóquei, originalmente publicada em 2014 (e em 2015, no Brasil), nos fornece toda a sua genialidade e inovação poética. Palavras faltam para descrever a experiência que é a leitura de Matilde - agradável, confortável, musical, fluída, cheia de lirismo. Me tocou profundamente a poesia através de seus olhos.
Jóquei foi escrito entre Lisboa e o Rio de Janeiro - Matilde morou por três anos em terras brasileiras. E essa vivência é completamente perceptível na obra. Matilde criou a figura da "poeta-nômade" com sua biografia cheia de viagens, sua poesia reflete isso. É uma poesia de vivências com abordagem fluída.
"(...) Eu evitando o toque ruim dos ponteiros
do relógio que anuncia a já famosa fuga
de nossos corpos cada um para sua
ponta da cidade. (...)
É terrível a existência de duas retas
paralelas porque elas nunca se cruzam
e elas apenas se encontram no infinito".
(M. Campilho, Jóquei, Conversa de fim de tarde depois de três anos no exílio, p. 57).
O nome que a autora escolheu para dar a sua obra "Jóquei" faz referência à pessoa que participa da corrida de cavalo, que desbrava cidades e espaços. Aquele profissional que monta cavalos de corrida e que, com o tempo, cria uma relação amorosa imensa com o seu cavalo.
"(...) O que acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas.
Enterro-me noutras clareiras para que assim possa escapar-me da minha própria ideia de amor. (...) Sim, o amor veio e fez sua saudação. Não foi cortês nem bruto, não se apresentou como uma mudança de estação. Foi qualquer coisa como a entrada do fantasma de Platão no esqueleto de Aristóteles. (...) Recados de paixão há muito tempo abandonados. (...) E tempo para discernir o amor do que já é costume. (...) O que importa é ouvir a voz que vem do coração - seja o que vier, venha o que vier. (...) Daqui desta janela nortenha eu vejo o reflexo da água que se alojou em minhas rugas, e nem por isso eu sigo chorando. Venha o que vier, fico aguardando alguns poemas. Certas formas nos pertencem muito para além da memória".
(M. Campilho, Jóquei, A volta no cadillac de billy j., p. 83-85).
Na poesia de Matilde, o eu-lírico está em vários lugares ao mesmo tempo. Percebe-se um ar aventureiro. Matilde tem um jeito próprio de escrita, muito exclusivo. Há uma desconstrução da poesia tradicional, uma cadência musical - é uma leitura, em si, muito agradável. Matilde é atenta ao mundo contemporâneos e aos nossos muitos deslocamentos - sua poesia é cosmopolita.
"Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta só para te ver dançar.
E isso diz muito sobre minha caixa torácica".
(M. Campilho, Jóquei, O último poema do último príncipe, p. 33)
"Meu filho tente
não fazer de ninguém
uma cidade (...)".
(M. Campilho, Jóquei, Mão dupla, p. 43-45).
O amor é um tema corrente. Ele é um desconhecido identificável, um parceiro na mesa de bar, um amigo. O amor elevado à máxima potência - quem sabe o que é?
"Cuidado rapaziada,
tenham atenção a esse nó
que acontece no estômago
no preciso momento em que
esperam por vosso amante
na pracinha junto à igreja.
Ou é úlcera ou é amor".
(M. Campilho, Jóquei, Panteão nacional, p.25).
"(...) É preciso muito mais do que certas condições
climatéricas para que o amor escorra".
(M. Campilho, Jóquei, Rua do alecrim, p. 64)
"(...) Foi a homenagem mais bonita que alguém alguma vez fez a um amor já morto. (...)
Senhor arranca-me o coração de pedra".
(M. Campilho, Jóquei, Milagres que não são contrários à natureza, p. 100).
"(...) Não sei se fala do amor por alguém
e isso não me importa nem um pouco
O amor desenhado à luz das flores velhas
não me interessa mais".
(M. Campilho, Jóquei, Golpe de 7 graus, p. 106)
Em sua poesia nota-se a mistura de influências linguísticas e culturais. Matilde mistura o inglês, o português (ora brasileiro, ora lusitano), o espanhol e até mesmo o italiano (perché no?). Em si, é uma escrita interessantíssima e uma marca registrada da autora.
"Amor de aço
Sabe aquele amor que permanece nos dias
Se espalha nos areais
sem tempo nem nome
Se enterra vezinquando nas barbas de um estrangeiro (...)
Meu velho amor e eu
escolhemos ver a revolução aquática
a partir da bancada do bar
Nos estamos quedando mayores mi viejito amor y yo".
(M. Campilho, Jóquei, Vendaval, p. 111-112).
A distância entre os corpos (o meu e o corpo amado) é um tema recorrente na poesia de Campilho. Afinal a poesia também serve como uma forma de encurtar distâncias, ou aceitá-las eternamente.
"(...) Aquela frase sobre o amor está escrita em cartazes espalhados por todas as cidades onde já estive. (...) Li sobre pássaros e passei a saber que os pássaros medem a distância em unidades de corpo e não em metros: a densidade de cada corpo não importa, o que importa é a distância entre eles. (...) Quando não pude mais com o silêncio escutei as canções. Soube da morte no mesmo dia em que soube que o amor sim é importante, mas não é imutável. Acho que chorei".
(M. Campilho, Jóquei, Tiger balm, p. 47).
"Poderia escrever teu nome
70 vezes seguidas
Mas isso não espantaria
a saudade que sinto (...)
Isso em nada iria melhorar
a falta que faz teu corpo
dentro da sombra invisível
que diariamente se senta
a meu lado no restaurante
às 11 horas da manhã".
(M. Campilho, Jóquei, Dia de são tomé, p. 65)
"(...) Mudou tudo, honey, e a distância entre nós não foi certamente a causa para toda a explosão. (...) We've changed, honey boo, mas os climogramas permanecem".
(M. Campilho, Jóquei, We've changed honey boo, p. 97-98).
Por fim, Matilde Campilho carrega uma poesia sobre retornos, mas também sobre merecidos finais. É muito sobre o que diz a própria vida - uma hora você faz as malas, se despede e ganha asas, outra hora você retorna.
"Ele falou que eu precisava voltar
porque eu era sua família. (...)
Não tem notícia de você na cidade
faça-me um favor e volte (...)
Já chega de se inscrever
nesse campeonato do desapego
você sempre perde já deveria saber (...)
Você precisa voltar foi o que ele falou
volte por favor meu amor volte pra casa
então eu fiz a mala e foi por isso que eu voltei - eu voltei porque me chamaram".
(M. Campilho, Jóquei, Alguém me avisou, p. 52-54)
"Aquele amor
aquele que eu pensei que se despedaçaria como
um meteorito no Minnesota
(uma coisa assim estrondosa abusiva
gritante maravilhosa
estilhaço prolongado
cheio de uivos)
Afinal caiu silencioso
como um aviãozinho de papel
passeando em Itaparica
em dia da apanha dos morangos".
(M. Campilho, Jóquei, Badland, p. 121).