ReiFi 12/02/2016
Hellraiser e Psicose – Leituras do carnaval
Eu sempre tive medo do escuro. Parece até risível ler isso de alguém com quase 30 anos, mas é verdade. Lembro-me quando ainda criança e adolescente, ao lado de minha casa tinha um terreiro, um espaço onde eu e irmãos e amigos jogávamos futebol, e desse espaço era possível acessar um caminho escuro que dava até um chiqueiro sombreado por uma grande jaqueira – que, na época adequada, podia estar cercado por um milharal. Pois bem. Não bastasse apenas o medo do escuro por ele mesmo, eu ainda peguei o tempo em que a quaresma trazia consigo não só as cinzas na testa como também Lobisomens no percurso ao colégio, Mula-sem-cabeça em descampados e Luzerna nas colinas. E mesmo envolto pelo sobrenatural :D, eu sempre fui daquele tipo de “ver para crer” mas nunca de provocar. Explico. Eu nunca desafiei alguma entidade fantasmagórica com a frase: se for verdade, apareça agora na minha frente!!! E por que eu não fiz isso? Simples: vai que o bendito resolvesse confirmar a sua existência logo comigo :D
O tempo foi seguindo seu percurso natural, fui ficando menos frouxo e com o tempo resolvi enfrentar essa quase “patologia”. Para tal, pensei, nada melhor do que assistir a filmes de terror como tratamento. E desse raciocínio extremamente lógico, enfrentei O Exorcista.
“Por que começar com um meia-boca? Vamos logo para o mais casca-grossa de todos”, pensei.
MEU IRMÃO, foi traumatizante!!!
(para saber como foi essa experiência única, leia toda a saga na minha resenha sobre o livro de mesmo nome aqui).
Depois de confrontar o próprio satanás, daí para as demais películas foi relativamente mole. E numa dessas sessões, resolvi dar seguimento no meu tratamento, acompanhando a cinematografia das grandes personagens do terror: Hannibal, Drácula, Alien, Jason, Leatherface, Fred, Pânico e, finalmente, Pinhead.
Foi assistindo a um especial no canal “Pipoca e Nanquim” sobre o aclamado Wes Craven (1939 – 2015), criador de Freddy Krueger, que terminei por relembrar e me interessar pelo excelente filme B, gore, Hellraiser – Renascido do Inferno, agora de outro autor, o Clive Barker. A película conta a trágica historieta de Frank, um rapaz bonito, galanteador, viciado em sexo e todo tipo de prazer carnal – e das consequências de se brincar com o cubo de Lemarchand (um artefato mágico capaz de levar, quem descobrisse a sua combinação, a um cenário hardcore do “quarto vermelho da dor” de Cinquenta tons de Cinza :D e ao eterno encontro com Os Cenobitas, um deles o Pinhead).
Muito embora o filme gire em torno de Frank, passamos boa parte dele acompanhando o dia a dia de Lerry e Julia, sua esposa e madrasta da gracinha Kirsty. O casal está de mudança e resolvem estacionar numa antiga residência onde, ficamos sabendo pouco tempo depois, Frank fez o ritual com o famigerado cubo. Num determinado momento, Lerry se machuca e deixa cair uma quantidade considerável de sangue no assoalho (que serviu de ambiente para os paranauê de Frank), e desse resíduo surge uma ligação entre a Terra e a dimensão dos Cenobitas, permitindo assim o retorno de Frank.
Assisti ao filme, e agora? Vamos ao livro. E foi então que nesse carnaval resolvi fazer a leitura das minhas recentes e belas aquisições: Hellraiser, de Clive Barker e Psicose, de Robert Bloch, ambos livros belíssimos da editora Darkside, e A Sangue Frio, de Truman Capote, da Companhia das Letras (cuja resenha virá num futuro não muito distante).
Primeiramente, preciso confessar que comprei o romance de Barker apenas pela capa, pela composição primorosa dessa “EDITORA BRASILEIRA INTEIRAMENTE DEDICADA AO TERROR E À FANTASIA” e num segundo momento em razão da declaração apaixonada de Stephen King: “Eu vi o futuro do Horror… E seu nome é Clive Barker“; e assim também foi com Psicose, mas com um detalhe, para este eu tinha a ligeira impressão (acertada) de que o seu texto, estilo e trabalho do autor na construção da narrativa seria muito superior àquele.
Espero que você leitor tenha lido a minha resenha sobre o romance O Exorcista, se não, basicamente, o que aconteceu neste se aplica à obra Hellraiser. Em que sentido? Quanto ao quesito necessidade de assistir ao filme (também do Clive Barker) para poder sentir e preencher o vazio deixado pela escrita – muito simples (vou me arriscar e dizer: pobre). Isso talvez tenha acontecido em razão do porquê da origem do livro, que foi, basicamente, a tentativa última do autor em fazê-lo virar filme após uma série de negações por parte dos estúdios. Isso mesmo. O livro somente passou a existir quando Clive resolveu transformar o roteiro num romance. Tendo-o feito, vendeu muito bem. Veio o sucesso e em seguida a feitura da película.
E o que adveio disso tudo? 1 A boa “adaptação” para o cinema, com pouquíssimas mudanças na historieta, sendo a mais gritante (e afirmo, muito bem vinda) “Kirsty, friendzone” transformou-se em filha de Lerry, 2 Os conceitos sobre o cubo, Os Cenobitas (a concepção artística do Pinhead é fascinante) e toda essa mistura de Sadomasoquismo, sexo, luxúria, inferno, dor, prazer e muito, muito sangue. Ah, e a trama, ela é legal :D. Fora esses conceitos, desculpem-me amantes do livro, apesar de eu ter a consciência de que isso era esperado, a escrita do Clive é muito fraquinha, muito rasteira. É preciso muito esforço de nossa parte para conseguir tirar mais do que nos é apresentado. Não é ruim, mal escrito, é apenas escrito.
Seguindo um caminho diferente, Psicose já nos traz aquilo que faltou no Hellraiser: profundidade. Claro, não vamos exagerar, não é um Faulkner, mas, à sua maneira, não deixa devendo para nenhum romance de suspense/policial, sendo este recente ou não.
Em suma, o livro conta a história da secretária Mary Crane e o que ela resolveu fazer com os 40 mil dólares roubados de seu chefe. Após planejar o golpe, ela decide fugir e levar o dinheiro com o intuito de ajudar seu namorado a saldar umas dívidas e finalmente poderem se casar. Já na autoestrada, o tempo vira e tem-se início uma forte tempestade. Mary decide, então, passar a noite no velho Motel Bates e seguir viagem ao raiar do dia. Quando ela se preparava para tomar banho, é atacada, e o romance pula uma semana no tempo, quando passamos a seguir os passos de Lila, irmã de Mary, do noivo desta, Sam Loomis e do detetive Arbogast.
Narrado em terceira pessoa, a estrutura se alimenta daquilo tão batido por Dan Brown, capítulos curtíssimos em que cada parágrafo final nos instiga a continuar lendo, mesmo com a gente relutando para encostar o livro e ir fazer outra coisa. Mas enquanto a escrita do Clive resume-se ao básico para se construir uma história com início, meio e fim, Bloch traz uma linguagem mais bem elaborada, urdida e provocadora. Ele saiu do lugar comum. Procurou nas entrelinhas deixar vestígios de que seria sim possível adivinhar o twist da história. Eu, por exemplo, tinha visto primeiramente o filme e estava procurando, logo nas primeiras páginas, os rastros deixados pelo autor. E posso dizer que sim, eles estão lá, da mesma maneira que no filme Ilha do Medo, O sexto Sentido e Clube da Luta. As metáforas indicavam o caminho verdadeiro, as piadas e, claro, nos memoráveis diálogos entre mãe e filho.
Como mencionar Psicose sem falar sobre o filme, não é? Como o próprio adaptador da obra para o cinema afirmou certa feita (pelo menos é o que consta na contracapa da minha edição), ele tirara tudo para o seu filme do romance. E pelo que pude perceber, Hitchcock foi muito honesto com essa declaração, porque a adaptação cinematográfica é fidelíssima, perpassando a trama, os diálogos, momentos-chave e, obviamente, os confrontos entre Norman mãe e Norman Filho.
Mas fico por aqui sobre quanto da riqueza do romance foi capturada, porque a versão fílmica é superior. Vide, por exemplo, a famosa cena do banheiro. A maneira como o Bloch descreveu a situação perdeu e muito para as escolhas e a genialidade de Alfred, quando este conseguiu mesclar a trilha sonora mais a forma e os ângulos e os cortes da câmera para montar esse instante único na história do cinema. É pungente. Memorável. Já Bloch, em três parágrafos meramente descritivos, resumiu toda a situação; e, com isso, os movimentos rápidos da faca perderam o brilho e impacto.
Outra escolha acertada de Hitchcock foi mudar a figura de Norman Bates. No livro, temos um senhor beirando os 40 anos, gordo, óculos redondos e de lentes grossas, taxidermista, o estereótipo do nerd fracassado. Enquanto que no filme, Anthony Perkins – magro, alto, bem afeiçoado – faz as vezes do esquisito, mas gente fina, Bates. Mesmo você conhecendo o mistério que envolve a trama, sua reviravolta, é muito complicado imaginar Perkins fazendo o que ele viria a fazer; já, por sua vez, é fácil atrelar a imagem daquele “nerd fracassado taxidermista” ao ator Laurence R. Harvey (sim, aquele do Centopeia Humana) e a possibilidade de ele cometer alguma barbaridade.
Posso concluir meu texto dizendo duas coisas: 1. Não tenho mais medo do escuro :D (mas continuo sem desafiar as figuras fantasmagóricas); e 2. Fui muito feliz com as minhas aquisições para esse carnaval :D. Sobre meu tratamento, recomendo a você que faça o mesmo, enfrente logo o capiroto e depois as suas crias em forma de filmes. Agora, quanto à sua forma escrita, no caso de Hellraiser, antecipo a necessidade de você se interessar pela temática e de curtir filmes B de terror e ser um pouquinho indulgente. Caso esses pré-requisitos sejam preenchidos :D, vale sim ler o romance. Para Psicose, aí não tenho contraindicações. Caia matando. Leitura prazerosa, divertida e descompromissada.
Bons livros. Boa leitura.