Lucas 17/12/2018
As amarguras de uma vida insalubre
Poucos autores na história da literatura foram capazes de usar da psicologia em suas obras como Honoré de Balzac (1799-1850), o maior escritor francês de todos os tempos (pelo menos se for analisada a quantidade e profundidade de suas obras). Por mais que essa afirmação venha a ser contestada, uma coisa é fato: nenhum outro escritor foi capaz de equilibrar tão bem o romantismo em si (ou um estilo mais descritivo e reflexivo de narrar) com nuances internas dos personagens ou do contexto histórico em que a obra em questão se passa.
A produção literária de Balzac é extensa como a de nenhum outro autor: A Comédia Humana, a "enciclopédia" da sua carreira, é composta por incríveis 95 romances e outros contos menores. Conhecer todos eles em sua composição individual é uma aventura que demanda anos, até mesmo para leitores mais compulsivos. Como ela objetiva descrever a sociedade francesa pós-revolução (século XIX), A Comédia Humana é dividida em três segmentos principais: estudos de costumes, estudos filosóficos e estudos analíticos, cada um contendo dentro de si diversas subdivisões que visavam agrupar as obras com temáticas razoavelmente parecidas.
A Mulher de Trinta Anos (1842) está situada no segmento mais "romanceado" d'A Comédia Humana: os estudos de costumes, na categoria cenas da vida privada. Tal classificação já de cara é capaz de delinear a abrangência (especialmente psicológica) trazida por seus escritos. A obra trata da trajetória de Julie (ou Júlia, dependendo da tradução), jovem e encantadora parisiense que, no início da narrativa (1812), possui 14 anos. Suas dúvidas e paixões de menina recém-colocada na alta sociedade da época são descritas com louvor; inicialmente com a influência do seu pai, na observância de possíveis "pretendentes" que acaba por culminar no precoce amadurecimento da protagonista.
Posteriormente, Julie d'Aiglemont (sobrenome de casada), já adulta, enfrenta as agruras ocasionadas por um amor impossível: a descrença, o desânimo, a falta de perspectiva e a questão da honra, tão relevante naquela época em detrimento de outros sentimentos mais importantes, como a felicidade. Sua trajetória desde então é marcada por vários acontecimentos nefastos, nas quais podem ser apenas (para que se evitem spoiler's) descritos como desoladores e tocantes. É nítida, nesses momentos, a influência narrativa que o livro exerceu sobre Anna Kariênina (1877), umas das melhores obras de Liev Tolstói (1828-1910), que, se tinha mais de um núcleo narrativo, foi igualmente sublime na descrição dos elementos opressivos que se abarcam na mulher em um casamento desgastado e doentio.
O fato de estar categorizado em cenas da vida privada dentro d'A Comédia Humana não torna a narrativa d'A Mulher de Trinta Anos menos crítica que as outras da "enciclopédia" em relação às hipocrisias sociais. Aqui, os apontamentos de Balzac são mais localizados na figura de Julie, mulher rica da alta sociedade que enfrenta e pratica muitas dessas incongruências sociais. Dista de forma considerável de Ilusões Perdidas (1843), que, por estar inserido em cenas da vida provinciana (outra categoria dos estudos de costumes) é bem mais abrangente no que tange em descrever e criticar os sensíveis defeitos da sociedade francesa do início do século XIX, em especial na falsidade que havia em praticamente todos os cantos de uma "societé" que se autodenominava evoluída.
Outro ponto que singulariza a narrativa d'A Mulher de Trinta Anos é o olhar do narrador, que sempre inicia seus capítulos a partir de um local ou de algum ponto de vista comum e vai generalizando até chegar ao núcleo da protagonista. Nestes momentos, Balzac inclusive aproveita para mencionar outros personagens de seus livros, que atuam de uma forma indireta sobe Julie e seu círculo, esclarecendo acontecimentos ocorridos dentro da cronologia da obra e que não são detalhados diretamente. Como a narrativa não é cronologicamente definível e avança irregularmente (terminando no ano de 1844), determinados personagens (inclusive o próprio narrador onisciente) se relacionam com a protagonista e, nessa relação, muitos pontos do passado de Julie que não aparecem diretamente na obra vão sendo desnudados. Trata-se de uma forma genialmente criativa de amarrar pontas soltas e de mencionar outros elementos d'A Comédia Humana, o que deve ter sido a verdadeira justificativa do escritor para tal atitude.
Em termos mais práticos dentro do contexto social da época, é grande a contribuição de Balzac, que fez de Julie o chamado modelo de "mulher balzaquiana". Tal rótulo está longe de ser um defeito feminino, pois o autor tratou de endeusar, não só em termos de maturidade, mas também de beleza física, a mulher que chega a casa dos trinta anos, que, à época, já era vista quase como uma anciã. Naquele tempo, as mulheres que não se casassem por volta dos vinte anos de idade não possuíam um futuro favorável pela frente: por meio de um comportamento ridículo (mas que era normal no início do século XIX), a sociedade deixava de lado essas mulheres, que, segundo Balzac, estavam no seu "ápice poético" da existência. São diversos os momentos em que o autor toma partido dessas mulheres, solteiras e também as mais velhas, que possuem muitos atributos que outras que estão na "flor da idade" estão longe de desenvolver.
A Mulher de Trinta Anos traz todas as características que fazem de Balzac único. É uma narrativa crua, mais informativa que emocionante, com um desfecho bem previsível e que atinge em cheio o objetivo central de todas as obras do autor: a desnudação de uma sociedade francesa corrompida e infestada de hipocrisia, materialismo e futilidades especialmente nas classes superiores, dominantes após a restauração da monarquia francesa em 1814. Tais características são o insumo principal para a história de Julie d'Aiglemont, cujas tragédias derivam, de uma forma indireta, de um círculo social baseado em relações promíscuas e quase sempre desprovidas de sentimento.