Paulo.Incott 09/05/2017
Vigiar e Punir - Foucault
09/05/2017
Li pela terceira vez “Vigiar e Punir”. A primeira depois de ter lido “Em Defesa da Sociedade” e “Sociedade Punitiva”. Fez muita diferença. Ler a obra compreendendo melhor em que ponto se encontravam as pesquisas de Foucault acerca das manifestações de exercício do poder permite uma visão muito mais ampla do significado desta obra. Diante disso, acredito que Vigiar e Punir possa ser visto como um “mergulho” do autor em um aspecto específico de suas pesquisas. Seria como um profissional da área de saúde que estuda as manifestações, sintomas, efeitos de um determinado estado de saúde e que decide se deter num estudo de relatos de casos para verificar de modo concreto se as conclusões de seus estudos se comprovam.
Similarmente, Foucault se encontrava na passagem de estudos do Poder Disciplinar para estudos sobre o Biopoder. Vigiar e Punir se encaixa como um aprofundamento nas pesquisas que ensejarão esta transição, a partir da análise de um modelo específico de exercício do poder > o poder punitivo - através da genealogia da pena como protótipo das formas de poder estudas e por estudar.
Situando desta forma a obra, passemos a analisa-la brevemente.
Foucault delineia quatro objetos para este livro:
1. Desnudar os efeitos positivos (constitutivos) dos mecanismos punitivos, de modo a não falar destes em seu aspecto repressivo ou excludente, mas em sua função social criadora;
2. Analisar os métodos punitivos enquanto técnicas e táticas políticas;
3. Verificar a possibilidade de existência de uma matriz única para ciências humanas e o direito penal, de modo a perceber como se complementam parta formar uma tecnologia do poder e uma tipo peculiar de saber e;
4. Verificar a entrada da alma no palco da justiça penal como uma nova forma de investimento das relações de poder sobre os corpos.
Numa frase: Compreender de que modo ocorre o surgimento do homem como objeto de saber para um discurso científico e para uma nova técnica de poder (punitivo)
Foucault não se debruça sobre esses objetivos de forma linear. Assim, a forma mais lúcida, me parece, de fazer um apanhado de sua obra, parte da compreensão de conceitos chave nela destacados.
Um dos tópicos principais abordados por Foucault neste livro é o PODER DISCIPLINAR, originador de uma SOCIEDADE DISCIPLINAR.
Do que se trata? Para o pensador francês o poder disciplinar possui “função menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção”.
Assim, este se insere sobre o corpos de forma bastante distinta do poder soberano até então. Ele interessa-se pela fabricação de indivíduos obedientes e úteis (dóceis). Opera através da “distribuição infinitesimal das relações de poder”.
Preocupa-se com minúcias, detalhes. Prioriza os Exames, as Análises, as Comparações. Dá ensejo a quadriculamentos que permitam cada indivíduo ser colocado no local em que produza os melhores resultados com o menor esforço.
O poder disciplinar difere do poder soberano ainda de outra forma: enquanto aquele operava a partir da lógica do espetáculo, manifestando sua atuação através de cerimônias de terror que objetivavam produzir medo e reforçar a posição do soberano, o poder disciplinar atua de forma discreta, silenciosa, suave, comportando-se como uma máquina eficiente e solitária, sem que se possa apontar um “cabeça”; fazendo crer que atua de modo “natural” ou “impessoal”.
A disciplina produz quatro formas de individualidade: celular (repartição espacial), orgânica (codificação atividades), genética (acumulação do tempo) e combinatória (composição de forças). Para isso, lança mão de quatro técnicas: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios, organiza táticas.
Tática é a técnica mais elevada > “capaz de construir, com corpos localizados, atividades codificadas e aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferenciações das forças se encontra majorado por combinação calculada.”
Aliado a esse conceito central de Poder Disciplinar, que se torna elementar na passagem do séc. XVIII para o séc. XIX e se reforça daí em diante, Foucault concebe a noção de ECONOMIA DO PODER e DOS CASTIGOS E TECNOLOGIA DO PODER.
A Economia do Poder e dos Castigos prescreve uma lógica de suavização do poder de punir, uma difusão de seu exercício em uma série infinita de micropoderes (sistema carcerário = arquipélago carcerário = sistema penais difusos = microsanções), atuantes em toda a estrutura social sob um mesmo princípio (o poder disciplinar). Seu objetivo é reduzir os desvios, de modo a tornar todos os indivíduos parecidos.
Através de EXAMES, RELATÓRIOS, CATEGORIZAÇÕES, AVALIAÇÕES e de uma constante e ininterrupta VIGILÂNCIA opera-se uma ORTOPEDIA MORAL.
“…definir novas táticas para atingir um alvo mais tênue, mais também mais difuso no corpo social. Novas técnicas às quais ajustar punições e cujos efeitos adaptar. Novos princípios para regularizar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando eficácia e multiplicando circuitos”
“Humanidade é o nome dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos. Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela política.”
O produto final desta Economia e desta Tecnologia do Poder Disciplinar é a NORMALIZAÇÃO, tema que ganha ênfase em toda a obra de Foucault e que será trabalhado a partir de diferentes ângulos pelo autor. Em minha visão, um dos alicerces para compreensão de todo o pensamento foucaultiano.
Esse intento de Normalização permite a emergência das ciências humanas, que sustentam, a partir de uma lógica de “humanismo” a necessidade de sistemas de castigos coerente com a lógica da produção e legitimação política calcada na filosofia contratualista.
“O funcionamento jurídico-penal não se origina da superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo, ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora”
Todo o aparato de saber que aflora no apogeu cientificista opera de modo a normalizar indivíduos.
Precisa-se compreender o sistema penal que resulta desta época como parte desta nova racionalidade.
Há, na sociedade disciplinar:
“Juízes da normalidade em toda parte: professor-juiz, medico-juiz, educador-juiz, assistente social-juiz, todos fazem reinar a universalidade do normativo… a rede carcerária, em suas formas concentrada ou disseminada, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância, observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador”
Por fim, Foucault se depara com a questão da pena de prisão diante desse arcabouço teórico levantado. Surge o estranhamento. De diversos modos a reclusão não parece, num primeiro momento, adequar-se à nova racionalidade. Mais grave ainda: a pena de prisão nasce com sua crítica. Nasce “falida” em todos os seus pressupostos.
Cresce em meio a seus inúmeros projetos de reforma e contra os princípios de individualização da pena elegantemente discursados pelos reformadores (Beccaria e outros). “A diversidade tão solenemente prometida reduz-se a penalidade uniforme e melancólica.”
Como? Para que serve o “fracasso” da prisão? De que forma se deve explicar a permanência da pena de prisão como castigo “oficial” ao longo de tanto tempo, tendo sua “ineficácia” sido apontada, provada, alardeada de forma tão clara?
Surge a análise mais intrigante de Foucault nesta obra. Nasce desta a compreensão do princípio panóptico, do papel da polícia e da importância primordial da vigilância.
Emerge um outro eixo importante do pensamento foucaultiano - a compreensão da ADMINISTRAÇÃO DIFERENCIAL DE ILEGALIDADES. Nesta reside, para o autor, a grande chave de compreensão do sistema penal tal qual se estabelece e se estende desde o do séc. XIX. Deixarei ao leitor o prazer da descoberta. Colaciono apenas dois pequenos trechos elucidativos:
“É preciso que as infrações sejam definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e acantonadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável, e que lhe seja inflingido um castigo de que ela não poderá escapar”
“…essa grande especialização de ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários… diferenciação entre ilegalidade de bens versus ilegalidade de direitos… A burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos. Ao tempo que essa separação se realiza, afirma-se a necessidade de vigilância constante. Em suma, a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas.”
Como conclusão, não poderia deixar de alistar duas passagens de minha predileção:
“Dizem que a prisão fabrica delinquentes. É verdade que ela leva de novo, quase fatalmente, diante dos tribunais aqueles que lhe foram confiados. Mas ela os fabrica no outro sentido, de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século e meio, os pega todos juntos na mesma armadilha”
Citando Joseph Michel Antoine Servan:
“Quando tiveres conseguido formar assim a cadeia de idéias na cabeça de vossos cidadãos, podereis então vos gabar de conduzi-los e de ser seus senhores. Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro; mas um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias; é no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta; laço tanto mais forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é obra nossa; o desespero e o tempo roem os laços de ferro e de aço, mas são impotentes contra a união habitual das idéias, apenas conseguem estreitá-las ainda mais; e sobre as fibras moles do cérebro se funda a base inabalável dos mais sólidos impérios.”
Nota: em que pese vivermos num país em que os desdobramentos observados por Foucault para a sanção penal não serem exatamente aplicáveis, uma vez que o sistema penal organiza-se em países marginais de modo significativamente não coerente com seus discursos, ou seja, não podendo ser compreendido nem mesmo através das manifestações do poder judiciário, uma vez que colocado em prática de modo muito mais substancial pelas agências de repressão (sistema penal subterrâneo), é válido lembrar que as categorias com que Foucault trabalha permitem uma compreensão abrangente sobre o exercício do poder punitivo, propiciando ao estudante atento um conhecimento útil para a apreciação dos mecanismos de naturalização das (ir)racionalidades do poder punitivo como um todo.