Relato de um certo Oriente

Relato de um certo Oriente Milton Hatoum




Resenhas - Relato de um Certo Oriente


98 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7


Toni 10/05/2011

Retorno e memória
O viajante tem sido desde a antiguidade uma fonte privilegiada de relatos. Sujeito do movimento, da transformação, do encontro e da troca—da mesma forma que o comerciante que nunca saiu de sua cidade mas vive em pontos de passagem—, ele é construído sob o signo da intersecção, da inevitável miscelânea formada pela confluência de vários caminhos. O lugar do viajante é um devir, um constante estar em movimento suspenso pela travessia, nem origem e tampouco destino: um lugar imponderável que engendra a elaboração da vivência, urgindo que o sujeito se ponha a narrar para compreender. Esse processo une as experiências de si e do outro, e as combina em um trabalho narrativo extremamente fecundo, em que diferentes vozes se entendem e complementam, formando um relato forte e transformador, como toda boa e velha narrativa oral.

De maneira análoga, o retorno ao lar também impulsiona uma força criadora, ainda que fomentada não pelo presente imediato da viagem, mas pela memória vicária das coisas e lugares significativos ao indivíduo que retorna. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, o retorno é, também ele, uma suspensão: um devir desta vez no tempo, cuja inescrutabilidade do relato torna-o inevitavelmente fragmentado, suspenso entre as lembranças guardadas pelo viajante e memória aprisionada no espaço-tempo da ausência. Neste caso, a compreensão dependerá mais fortemente da voz do outro, do olhar do outro, da elaboração dialógica. Assim, o relato alteregóico será tanto urgente quanto imprescindível.

Os romances “Dois irmãos” e “Relato de um certo oriente” do amazonense Milton Hatoum são construídos, respectivamente, a semelhança dos processos narrativos acima explicitados. O parentesco com as considerações de Walter Benjamin acerca do narrador não é acidental: é dentro desta tradição de transmissão de experiências—associada aos viajantes e comerciantes em constante fluxo—que o autor se situa, como declarou em entrevista concedida de 1993. Ambos os romances circunscrevem-se em uma vertente da ficção brasileira contemporânea de retorno aos gêneros narrativos tradicionais, como o romance memorialista e histórico, acrescentando-lhe aquilo que há de novidade nos estudos culturais interessados em compreender o multiculturalismo presente em configuração latino-americana. No entanto, “sem recorrer aos excessos descritivos que também marcaram parte dos narradores do boom latino-americano, Hatoum consegue absorver em sua ficção o espaço amazonense e relatar seus costumes, sem cair num exotismo hipertrofiado e valorizando referências precisas aos fatos históricos.” (Schøllhammer, 2008).

A produção de Hatoum se situa num momento em que a temática nacional abria espaço à inclusão dos grupos migratórios enquanto constituintes de nossa história, grupos como os dos judeus, dos galegos, dos japoneses, etc. “Relato de um certo oriente” e “Dois irmãos” resgatam a tradição árabe de origem libanesa que se instalou nas ilhas flutuantes de Manaus, tecendo no multiculturalismo de muitas mãos, intrincadamente, o conflituoso encontro de crenças indígenas, costumes islâmicos, natureza extravagante e história nacional.

Duas narrativas sensíveis e sobretudo bem elaboradas, em que o esforço do relato se constrói em conjunto, representando na escassez e na profusão de lembranças a busca pela identidade. Em ambos, "a consciência dos narradores filtra o mundo ao redor para reter apenas as circunstâncias e os detalhes que nela imprimiram sua marca, o que sustenta e realça o impressionismo do 'olhar oblíquo'". (Pellegrini, 2008) Neste processo, a narrativa figura como uma impossibilidade, "que é, dialeticamente, a mesma (...) para todos os homens: a do resgate do passado, da intraduzibilidade do vivido e da incompletude dos sujeitos, os quais, a despeito de sua situação, sempre estarão buscando deslindar algum ponto cego da memória, última e inalcançável fronteira." (idem).
Alê | @alexandrejjr 17/11/2021minha estante
Texto em tom altamente acadêmico que acaba não trazendo a tua experiência de leitura, mas muito bem escrito.


Toni 18/11/2021minha estante
Obrigado pelo comentário. De fato, foi um resumo dos dois livros que fiz para uma apresentação acadêmica e a proposta naquele momento não era aprofundar as impressões de leitura de cada obra. Acabou que para não perder o texto, resolvi colocar por aqui como resenha. =D




Hugo R 13/12/2013

Arquitetura de Cristal
Se por um lado, Hatoum, jamais exerceu a profissão de sua formação, arquiteto, nada nega que ele seja, por excelência, um arquiteto da memória, como prova o livro "Relato de um certo Oriente".

Em tom epistolar, as histórias do romance são tecidas pela memória de uma mulher que, após uma ausência de longos anos, volta à cidade de Manaus, para reencontrar sua mãe adotiva, a matriarca libanesa Emilie. Ao chegar ao local, no entanto, depara-se com a Manaus do presente e a nostalgia que o simbolismo de certos cheiros, cores, eventos e pessoas provocam em seu pensamento.

No livro, a lembrança é tratada como meio de revisitar o passado para compreender o presente. Para isso, evoca-se a memória na força de sua plenitude, partindo-se da boêmia das noites enfeitas com histórias e fumaça do narguilé à colisão das tradições cristãs do Ocidente com a filosofia do Alcorão.

O contar de histórias permite à narradora comunicar sentimentos ocultos, viajando no tempo sem o esforço de um passo sequer. É assim que suas cartas ao irmão distante tentam encontrar conexões entre situações dispersas no tempo, regenerando as ruínas do passado pela força da memória.

Sensível, poético e misterioso para além da última página, "Relato de um certo Oriente" é, sobretudo, um convite à releitura, quando não das histórias encerradas nas páginas do livro, da nossa própria história. Afinal, a identidade humana se constrói no viés de experiências que, ao cabo da última página, parecem apenas memórias.
Socorro Rolim 21/05/2014minha estante
Foi exatamente essa a minha percepção desse livro. Se tivesse lido essa resenha antes teria evitado de escrever a minha...


Luhhh ^___^ 27/06/2014minha estante
Eu não gostei muito do livro, mas é motivo pessoal mesmo, de não ter me agradado pela história. Apesar de a narrativa me cativar em alguns momentos.
Foi difícil terminar a leitura, até pensei em desistir da leitura...
Muito bom o teu comentário!!!




Thereza 17/07/2020

Diferentes vozes com uma só narradora
Aqui, nesse romance de Hatoum, teremos o recurso de múltiplos pontos de vista de um modo distinto do que — ao menos eu — estou acostumada.
Acompanharemos somente uma narradora, mas múltiplas vozes. Essa Narradora não apresenta seu nome, não há necessidade, já que o livro é um relato que ela escreve para seu irmão que mora em Barcelona. Porém, mesmo que o relato seja dela, ela decide ser bastante democrática e praticamente transcrever o que grava das pessoas à sua volta. Digo praticamente porque o tom de escrita é sempre o mesmo, ainda que se tratando de outro membro da família falando. Esse tom, a própria narradora o justifica.
"Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado."
E quem são essas pessoas cujas palavras são tão importantes para serem gravadas e enviadas a seu irmão? São da família que os acolheu.
Emilie é a avó adotiva da Narradora e de seu irmão. A mãe deles os entregou à matriarca e pediu que os criasse. Não saberemos a ligação dessa mãe com Emilie, porque na verdade não importa. Emilie é também uma imigrante do Líbano que vive em Manaus, assim como seu marido. Além de esposa e avó ela é mãe de 4 filhos, são eles: Hakim, Samara Délia e outros 2 inomináveis. Ela também é irmã de Emir e Emílio, um dos dois já falecido, cujo fantasma (metaforicamente) acompanha as gerações dessa família. E afora tudo que a define dentro de suas relações sanguíneas (ou quase), ela também é uma mulher católica, muito espiritualizada, que respeita as crenças da região, não descarta nenhum conhecimento sobre ervas e misticismos, uma vez ao ano distribui boas ações pra quem precisar e ganha dessas pessoas os mais exóticos presentes. Ela é o cerne que sustenta tudo que citei acima e que está à sua volta. Sem ela, muito desabaria. E é o que vai acontecer conforme os membros da família decidem deixar Manaus e afastar-se dessa mulher.
A própria Narradora deixa Manaus. E, 20 anos depois, volta. E é nessa volta que colhe esses depoimentos. Ela os colhe pois quer conhecer. A verdade é que, além de Emilie, segredos sustentam a permanência dessa família. Segredos desde coisas simples como o porquê de Emilie amar tanto um relógio, até a verdade por trás da morte do tio dos 4 (agora adultos) descendentes da matriarca.
E esses segredos e essa insaciedade da Narradora por desvendá-los nos faz pensar como que as relações consanguíneas, por mais sólidas que possam parecer, não são capazes de suportar tudo. E basta uma desavença por religião, uma morte, uma partida ou uma história mal contada para que os envolvidos passem a repensar qual o propósito de permanecerem ali.

Para encerrar, o término dessa leitura me deixou um certo sentimento de orfandade. Me apeguei à essa história, a essas figuras. Queria permanecer e saber mais. Quando estava quase tocando o elo que se formava entre mim e Emilie, o livro termina. Não basta dizer que o amei (e amei muito), parece genérico demais para um livro tão longe do genérico. Quando amo tanto um livro como amei Relato de um certo Oriente, geralmente fico querendo ler tudo que o autor já escreveu. Mas não sei se quero ler tudo que Milton Hatoum escreveu, porque foi profundo demais o espaço interno que essa narração me atingiu. Certamente, em algum momento, vou me aventurar por Dois Irmãos, porque sou brasileira e preciso conhecer algo tão feito por gente que carrega o mesmo título que eu. Mas isso, imagino, ocorrerá daqui uns anos, quando eu for capaz de me esvaziar dos sentimentos que esse livro me jogou goela abaixo.

site: https://medium.com/@thetenardotto/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum-b792da8a9e22
Sander.Garcia 12/06/2021minha estante
Olá. Gostei muito de sua resenha. Li integralmente. Estou começando a ler esse livro, mas confesso que já voltei páginas 3 ou 4 vezes, tentando entender, afinal, quem está narrando a história e em que momento o narrador seria outro. Depois de sua resenha parece que algo clareou. Não cheguei ainda à página 20, mas creio que voltarei ao começo, a fim de lançar um novo olha sobre essa obra. Sou amazonense e descobri Hatoum este ano. Aliás, minha paixão por leitura começou no ano passado.
O primeiro livro dele, Cinzas do Norte, é muito envolvente, e me sinto em casa ao ler expressões, descrições de lugares, cheiros, eventos etc.
Mas, eu vim aqui para lhe recomendar a Leitura de Cinzas do Norte, uma bela obra de Hatoum. Meu próximo será o mais conhecido, Dois Irmãos.
Muito obrigado pela resenha esclarecedora.


Sander.Garcia 12/06/2021minha estante
Acho que não é possível editar as resenhas..rss. no parágrafo que se inicia com "O primeiro livro dele " , eu quis dizer "O primeiro livro dele que li."??

E onde se lê um novo olha, leia-se "um novo olhar ".




Flavio Rocha 15/03/2021

Relato de um certo oriente
A escrita de Hatoum traz o equilíbrio entre a força e a delicadeza. As vidas de seus personagens se misturam com a construção de Manaus, espaço ricamente trabalhado pelo autor, povoado pelas tradições das famílias imigrantes que tanto contribuíram para o seu desenvolvimento. Acompanhamos nessa história relatos de personagens diferentes sobre a vida de uma família libanesa que tem na matriarca o ponto de encontro desses episódios contados. É um livro sobre a tradição, sobre a dor e, acima de tudo, sobre a inevitável solidão que nos acompanha.
Justi 15/03/2021minha estante
Gosto muito desse autor.




Livia.Ishikawa 07/05/2022

Conjunto de memórias
Uma viagem incrível através das lembranças da família de Emilie em uma Manaus quase varrida pelo tempo.

É como se você se sentisse tomando um café num fim de tarde, escutando relatos vindos da boca de vários narradores com a mente perdida nas memórias de um passado que se juntam formando uma melancólica e poética história.
Alê | @alexandrejjr 10/05/2022minha estante
Parece ser um livro lindo, então. Hatoum é um mestre! Creio que, com o falecimento da Lygia Fagundes Telles, ele é o nosso autor mais prestigioso da literatura contemporânea.




Ana Quintela 10/08/2009

Lindo.
Terminei Relato de um certo Oriente (Milton Hatoun). Eu gostei muito do estilo do livro. Ele conta a história de uma família libanesa que parte para morar em Manaus. O livro é em primeira pessoa e a história é contada pelos próprios personagens que nos colocam a par da vida da família. Além disso, nos leva para "passear" na Manaus do início da 2ª Guerra Mundial e seu pós-guerra. Recomendo.
cid 10/07/2010minha estante
Adoro livros narrados na primeira pessoa. Vou conferir




Kai 06/03/2021

Escrevendo essa resenha meio mês depois que li o livro porque pensei que o tempo seria meu amigo e me ajudaria a entender, mas sinceramente que surto foi esse?
Começo dizendo com o que eu gostei: o desafio de ler.
Agora vamos aos pontos que me fizeram surtar:
1- Não há noção de tempo.
2- Não há noção de personagem que está narrando.
3- Não há noção de segmento.
4- Não tenho noção do que faz em uma lista de vestibular.

Leitura densa, difícil e com poucos momentos bons de ler. Linguagem nada convencional (e não no bom sentido), história chatíssima e por milhões de vezes incompreensível. Achei que estaria entendendo um pouco da cultura e pra ser sincera não sabia em que momento os personagens estavam no Brasil ou em outro lugar. Também não entendi em que momento tudo estava sendo contado, quantos anos depois? Aonde estariam os personagens?
Passamos capítulos inteiros sem saber quem está narrando porque (nas palavras do autor) no livro dele não é para as respostas serem entegues de mão beijada aos leitores. Ainda afirmando que as traduções em outros países desrespeitaram esse enigma do livro porque descrevem quem vai narrar o capítulo, pois eu gostaria é de ter lido nessas edições, quem sabe não tinha passado tanta raiva. Não é aquela raiva gostosa de mistério que eventualmente você vai descobrir, é uma raiva de confusão total.
Também não entendi o parentesco ou amizade de um personagem em relação ao outro, isso é uma leitura para quem tem tempo e paciência de reler várias vezes fazendo anotações. Uma leitura para quem gosta de apreciar essa escritas não convencionais, o que convenhamos, não é o caso de um vestibulando.
Nesses livros com linguagem mais rebuscadas eu tento admirar a relação das culturas, ou da própria escrita, mas nem isso eu consegui, porque não captei nada da cultura, e a escrita é tão dispersa que não me deixava concentrar em momento algum.
Digamos que o personagem está sentado observando algo, e eu começo a entender a cena, o escritor puxa informações sobre o objeto observado que são totalmente confusas.
Ex: Maria estava na sala, vendo Juliana brincar, e passou a olhar o relógio, relógio preto como a asa do passarinho da Austrália, que veio um navio em 1700 e não sei quando, por um marujo Italiano...*

*Cena fictícia.

Começa a narrar e descrever algo fora do contexto, que não te faz viajar junto ou sequer prestar atenção ao que está lendo.
Não gosto de falar mal de livros ou dizer que não gostei. Mas não tenho como dizer em outras palavras, que odiei o livro, e todo o nervosismo ruim que ele me fez passar.
Pâm 28/06/2021minha estante
To lendo ele agora e me sentindo burra KKKKK




CRIS 21/06/2011

É uma boa história sobre a família. A única questão que precisa ficar clara é: o livro é narrado por vários personagens e sobre vários momentos; portanto, de difícil entendimento; até mesmo um pouco confuso. Para melhor entendimento é necessário ler e reler várias vezes.
André Fellipe Fernandes 01/01/2017minha estante
Foi difícil perceber a ligação entre os dois primeiros capítulos justamente por essa narração de diferentes personagens, não anunciada. Mas depois que entendi o fluxo, o livro correu bem. Mas de qualquer forma é um livro que deixa você com uma sensação de ter que reler algum dia, e dessa vez já prevenido.




Emerson Souza 23/09/2020

O segredo está nas aspas
Acho que preciso começar dizendo que eu sou apaixonado pela escrita do Milton Hatoum, ele traz poesia para as histórias de famílias.
Essa é a segunda obra do autor que eu leio (já li Dois Irmãos), e ele cria personagens tão palpáveis e descrição de lugares que os tornam apaixonantes.
Quanto a esse livro eu sabia que ia ser uma leitura difícil, que seria difícil reconhecer os narradores. Demorei para perceber que a maioria dos capítulos estão entre aspas. Eu consegui reconhecer algumas histórias mas em outras, preciso confessar fiquei perdidinho.
Mas lendo o último capítulo me ficou o questionamento se isso não era de propósito. A vontade que deu foi de voltar e ler tudo de novo, ler mais uma vez a história dessas pessoas que já me eram familiares.
Sander.Garcia 12/06/2021minha estante
Estou lendo este. E, antes de chegar à página 20, vou precisar voltar mais uma vez, desta vez, ao início.
Quero lhe indicar Cinzas do Norte que achei maravilhoso.




Leituras do Sam 22/11/2018

Posso falar, não vou mentir!
Superior a muitos livros, no entanto é chato e cansativou (apesar de curto).
E antes que venham dizer que não entendi, entendi sim viu, os 300 narradores iguais em sua linguagem o que não fez diferença alguma pra mim.
Esse é o segundo livro que leio do Hatoun, li alguns contos e chego a conclusão de que não curto sua escrita, mas o considero bem superior a muitos autores da atualidade.
Carlos 01/05/2020minha estante
Eu adoro o Hatoum. Mas entendo sua crítica à uniformidade das vozes narrativas.




Ladyce 19/04/2010

Uma narrativa que seduz como uma dançarina oriental!
Se eu tivesse que expressar visualmente a minha impressão do livro de Milton Hatoum, Relato de um certo oriente, teria que dizer que como leitora, fui habilmente seduzida por um texto cuja história se mostra tímida, escondida nas entrelinhas, e que vai se revelando, a contragosto, com algumas contorções, com gestos delicados e incompreensíveis, com mudanças de ritmo e de perspectiva. Foi como se eu tivesse sido vítima de magia, encantada por uma Salomé, por uma dançarina oriental, debaixo de sete véus. Infelizmente, Milton Hatoum não me deu, como leitora, a oportunidade de descobrir a total beleza da mulher que se desnuda à minha frente. O último véu, aquele que encobria o rosto, aquele que só me permitia, até o último momento, ver só os olhos pelos quais me aproximei da história, esse véu não caiu. A última barreira para a identidade da narradora dessa trama, para o seu nome, fica presa naquela película translúcida através da qual sinto a presença da face. Gostaria de que esse véu tivesse também caído, para saber ao certo, sem quaisquer dúvidas, a identidade dessa personagem, filha adotiva, sem-nome, que volta à casa da infância e se lembra das histórias do passado. Os detalhes do rosto que vislumbro e que imagino, no entanto, nessa dança sedutora, não me são jamais revelados. Foi grande a frustração causada pela narrativa dissimulada, oblíqua da história desta família de imigrantes do Oriente Médio no Amazonas. Terminado o texto, voltei ao início do livro para ter certeza de que não havia perdido algum detalhe que houvesse me desviado para um final inconclusivo, mas continuei, depois de reler o texto, com a inconveniente sensação de uma narrativa que carecia de um único detalhe para um desfecho pleno, satisfatório.

Esse é o terceiro livro de Milton Hatoum que leio. Já havia lido Dois irmãos, de que gostei imensamente, e Órfãos do Eldorado, cuja resenha pode ser encontrada aqui no blog. Esse grande escritor amazonense me agrada. Aprecio sua dedicação à memória, à memória cultural, à memória individual. Sem ela não somos, simplesmente estamos. Milton Hatoum tem uma maneira onírica de contar histórias e é capaz de nos levar facilmente a um mundo meio-sonho, meio realidade, à zona da imaginação que pontua narrativas de um passado não muito distante. Como nos livros citados acima, este romance também se passa em Manaus, essa última fronteira, terra de água e de floresta, de culturas imigrantes e nativas. Ali os mundos se encontram e aprendem a conviver.

A trama é centralizada numa família, cujos principais componentes e eventos que a cercam são contados não só pelas lembranças da principal narradora, uma mulher que, passados vinte anos, retorna ao lar da infância. Ela era a filha adotiva do casal de imigrantes, centro das recordações. A narrativa é composta de diversas memórias, não só dessa filha, mas também de outros membros da família, de amigos, memórias que se entrelaçam e se confundem. Conhecemos assim por pedaços, por insinuações o mundo de Emilie, matriarca desse clã libanês. Ao longo da narrativa tive consciência da herança da cultura oral brasileira e das culturas do Oriente Médio. Com uma narrativa evocativa, o romance ganha profundidade a cada relato, a cada personagem que conta parte da história. Acaba-se com a sensação de se ter lido, de fato um grande romance. Gostaria, no entanto, de fazer a seguinte observação: acho que Milton Hatoum complica um belíssimo texto, mais do que necessário. Se eu, que sou leitura assídua e regularmente inteligente, tenho que pegar papel e lápis para fazer anotações e ver se estou entendendo direito o que acontece na trama, há algo de errado. E foi isso o que aconteceu comigo. Li o livro com papel e lápis na mão. Até um esboço de uma árvore genealógica construí. Não acredito que isso deva acontecer com qualquer romance. Mas mesmo assim, a força narrativa de Milton Hatoum, e seu texto, cuidadoso como hoje já quase não vemos na literatura brasileira, não deixam que eu coloque esse livro de lado.

Vou recomendá-lo, mas advirto, nem sempre o texto tem a clareza que deveria transmitir. Fiquei frustrada e me senti manipulada com essa narrativa oblíqua e dissimulada.
comentários(0)comente



Hyslei.Roman 17/04/2024

Não é para iniciantes, nem para leitores fracos de memória!
Livro premiado, de escrita bastante poética e descritiva, mas com uma leitura difícil, pois requer atenção máxima do leitor aos detalhes.

A história gira ao redor de uma família e possui vários narradores que se alternam no relato de muitos fatos, sejam do presente ou do passado, trazendo à tona memórias e segredos. O livro também aborda preconceitos envolvendo religião, etnia, raça, classe social ou gênero, uns de forma mais intensa que outros.

Quando iniciei a leitura, eu consegui fluir razoavelmente bem até a metade, mas fiz uma pausa que se estendeu por muitos meses devido à dificuldade em prosseguir, seja pelo volume de descrições, trocas de narrador e por ter uma família inteira e seu ciclo de socialização para memorizar.

Quando retomei a leitura, confesso que precisei ler o que eu já havia lido novamente, mas dessa vez fui anotando a árvore genealógica e relacionando cada personagem com palavras-chave que me ajudassem a não perder de vista o rumo da narrativa. Dessa forma, consegui manter o ritmo sem me perder na leitura e foi possível sentir a razão pela qual essa obra é tão aclamada.

Não é uma leitura óbvia e exige esforço para identificar quem está com a voz ativa em cada capítulo. Alguns personagens nem têm seu nome citado na história, mas participam ativamente do desenrolar dos fatos, o que demonstra a genialidade do autor e também o nível de dificuldade de compreensão do texto. A escrita é muito sensível e bastante elaborada, o enredo vai se amarrando e ao mesmo tempo mantendo algumas brechas aceitáveis para especulação do leitor.

Não recomendo para iniciantes, mas vale a leitura! Sinto que terei que ler mais algumas vezes para conseguir contemplar esse livro de forma ainda mais completa e profunda.
comentários(0)comente



Ocelo.Moreira 18/05/2014

RELATO DE UM CERTO ORIENTE
A literatura é um meio mais completo de examinar a condição humana. E isso o autor amazonense, Milton Hatoum, faz com maestria em seus romances pomposos.

O primeiro livro do autor que li foi, Relato de um Certo Oriente, livro do qual estreou na literatura nacional. Ele relata a volta de uma mulher, após longos anos desde que se ausentara de sua cidade natal, Manaus, num diálogo com o distante. A obra trata-se de um regresso à vida em família, na verdade é um relato de uma complexa viagem ao passado, no qual o destino da personagem se confunde com a do grupo familiar na tentativa de encontrar a si mesmo e o outro.

O romance é uma reconstrução imaginária, ou seja, reformular no lugar de origem as lembranças e recônditos do esquecimento, a casa demolida. Um mundo enigmático e cheio de nostalgia.

Com uma viagem irresistível e uma prosa evocativa e fascinante, Milton Hatoum, no meandro de suas frases nos leva ao regresso à cidade ilhada pelo rio e a floresta amazônica, a conhecer o drama dessa ilha familiar por meio de uma família de imigrantes que ali há muito radicada, vive suas paixões, suas culpas e melancolias por meio do passado retrospectivo nas vozes de outros personagens encaixadas na voz da narradora.

Dentre os livros que li do autor, esse é o que tem a linguagem mais rebuscada e um estilo meio hermético. Onde o romance com suas figuras fortes e fugazes nos faz regressar ao passado, e encontrar no relato de volta à casa desfeita, o conhecimento limitado do outro e de si mesmo. Ou melhor, o enigma do ser!
http://ocelomoreira.blogspot.com.br/
comentários(0)comente



Socorro Rolim 20/05/2014

O mar tempestuoso da memória
Temos um mundo visível, palpável, e outro que “lateja em nossa memória”. Esse último é o que nos constrói.
Sugiro que leia esse livro. Sugiro também que antes de ler o primeiro capítulo você leia o último, depois volte para o primeiro, pule para o terceiro, volte ao segundo e siga...
Dizem que o presente só é explicado pelo passado. Concordo.Concordo também que compor uma vida é muito parecido com fazer uma colcha de retalhos: você vai escolhendo os melhores retalhos lá da sua cestinha e vai costurando uns nos outros e montando a colcha. Assim é a vida. Às vezes um retalho novinho que você acabou de cortar é costurado a um que você cortou ontem ou a outro que você carrega a mais de 20 anos. Eles vão se juntando, se conectando (usando uma linguagem mais de hoje) e tudo (a colcha ou a vida) vai tomando forma e no final você tem sua peça única, exclusiva.
É assim nesse livro ma-ra-vi-lho-so!
Nossas vivências nos constroem. “A vida começa verdadeiramente com a memória” e a memória de uma vida não é uma peça única,linear. É um conjunto de peças, de tempos e espaços e contextos diversos que devidamente ordenados dão sentido ao todo.
Lembra aquela história que sempre ouvimos de que antes de morrer a vida nos passa como se fosse um filme? É assim esse livro. É com se fosse um filme (tenho certeza que ainda vão transformá-lo em um filme) um filme incrível, magnífico, porem não editado. A edição é trabalho do leitor que vai lendo e “editando”, montando o filme, escolhendo as cenas e diálogos para compor a história. E ainda sobram mistérios no final. É perfeito.
Como bem sabemos, as memórias utilizam-se de todos os sentidos. Lembranças de imagens, de sabores, de odores, de texturas e sons. Cada um de nós tem uma vida inteira, um mundo só nosso guardado no baú. No baú de nossas memórias. E não estou falando daquele bauzinho que está lá no armário com fotos, cartas (quando ainda haviam cartas) e anotações, e lembrancinhas...essas coisas que guardamos com todo cuidado pela vida a fora. Falo do baú que está na nossa mente. Evocar a memória é necessário e às vezes é perigoso. Sabe Deus o que pode sair do teu baú.
Milton Hatoum constrói uma história costurada de memórias,misturando com delicadeza de forma encantadora, como se fossem ingredientes de um bolo improvável as coisas mais diversas: Manaus e Meca, Nossa Senhora e o Alcorão, tâmaras e cupuaçu, “As Mil e Uma Noites” e a Biblia Sagrada, almíscar e jasmim, Rio Negro e cedros do Libano... uma “Evita Peron” do Amazonas, uma adolescente grávida, uma criança surda muda, um suicida, um botânico fotógrafo,um curandeiro, dois gêmeos inomináveis... tudo e todos enveredando por trilhas que hora ou outra se fundem e se confundem “como se fossem dois rios que se juntam e viram um”.
Invariavelmente, para praticar o “conhece-te a ti mesmo” que Sócrates recomendou, é preciso sim abrir o baú e “navegar no mar (às vezes tempestuoso) da memória. Boa leitura.
comentários(0)comente



eueradeborah 29/06/2014

Isso não é uma resenha, é um comentário
Caramba, que livro! Eu prolonguei a leitura porque tinha medo que terminasse, e sofri quando terminou. Senti uma quedinha de Hatoum por Jorge Luis Borges e essa coisa do real e irreal nas memórias. Esses relatos, essas memórias todos nesse mosaico árabe-brasileiro, com cheiro de hortelã e forrado de organdis. Deus! Que lindo e que dolorido.
comentários(0)comente



98 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR