Gabi 08/11/2017Um golpe na alma"O que Deus fez por mim? perguntei. Ele me deu um pai linchado, uma mãe louca, um cachorro ordinário como padrasto e uma irmã queu na certa nunca mais vou ver. De todo jeito, eu falei, o Deus pra quem eu rezo e pra quem eu escrevo é homem. E age igualzinho aos outro homem queu conheço. Trapaceiro, isquecido e ordinário.
Ela falou, Dona Celie, é melhor você falar baixo. Deus pode escutar você.
Deixa ele escutar, eu falei. Se ele alguma vez escutasse uma pobre mulher negra o mundo seria um lugar bem diferente, eu posso garantir." [sic]
Celie é mulher e negra. Ela, como muitas outras de sua época, sofreu duplo preconceito, dupla agressão, duplo sofrimento – todos "duplos" que ainda permanecem arraigados na sociedade de hoje, infelizmente.
Celie não tinha para quem reclamar ou pedir ajuda, por isso ela escrevia (de acordo com seus parcos limites de escolaridade) para Deus, inicialmente. Um Deus, que não visão dela, a havia abandonado. Já aos 12 anos anos ela era estuprada pelo padrasto e, assim, acabou sendo afastada dos estudos por causa da gravidez. No entanto, não havia mais espaço na casa para mais duas bocas para alimentar. As crianças sumiram rapidamente.
Celie apanhava todos os dias. Era feita de escrava todos os dias. Sofria agressões de todos os tipos a todo momento. Foi por essa razão que ela não se opôs ao ser entregue para se casar com Sinhô. Não faria diferença. Todos os homens eram iguais: "Trapaceiros, esquecidos, ordinários."
"Mas eu num sei como brigar. Tudo o queu sei fazer é cuntinuar viva." [sic]
Mal sabia Celie que sua vida estaria prestes a mudar. Uma mudança lenta e sutil, mas que transformaria quem ela era, quem ela gostaria de ser: ela mesma, sem amarras, sem medos, sem mais sofrimentos. E tudo começou com a chegada de Shug Avery, um antigo caso de amor de Sinhô. Shug era o tipo de mulher deslumbrante, que vivia cantando pelo país e não aceitava ser subjugada por nenhum homem. (Enxergo essa personagem como o feminismo puro e simples, que brigava pela igualdade e se recusava receber ordens de qualquer tipo. Shug era a liberdade feminina, a força interior e a segurança que estava faltando dentro de Celie.)
"Ele bate em mim quando você num tá aqui, eu falo.
Quem? Ela fala. Albert?
Sinhô, eu falo.
Num posso acreditar, ela fala. Ela sentou no banco perto de mim com toda força, como se tivesse caído.
Por que ele bate em você? ela perguntou.
Porque eu sou eu e não você.
Oh, dona Celie, ela falou. Então ela me beijou na parte carnuda do ombro e levantou.
Eu num vou embora, ela falou, até eu saber que o Albert num vai nem mais pensar em bater em você." [sic]
Enquanto Celie aprendia sobre amar e ser amada com Shug, sua irmã caçula Nettie – que havia conseguido fugir do padrasto – se encontrava na África cumprindo missões e vendo, dia após dia, o cruel absurdo que foi o neocolonialismo. Ambas irmãs, tão distantes uma da outra, mas sempre procurando manter o contato através do Atlântico, durante 40 anos, vão lutar pelo que acreditam: que ainda existe amor e tolerância nesse mundo aparentemente abandonado por um Deus homem e branco.
Ler A Cor Púrpura é o mesmo que levar diversos golpes. As páginas são carregas de uma realidade pouco lembrada por nós e é isso que faz diversos trechos serem extremamente chocantes para quem está no séc XXI. Poucas histórias abrem espaços para tanta reflexão quanto a de Alice Walker. Do preconceito ao machismo, do neocolonialismo à violência ocidental, é impossível o leitor não sentir no âmago o que foi a vida de milhões de "Celies" e "Netties". A leitura é dolorosa e sobretudo necessária. Chorar faz parte desse processo. Largar a leitura para poder parar e refletir, também. Soltar palavrões é outra atitude que tive diversas vezes, porque, me desculpem, mas A Cor Púrpura é um dos livros mais INCRÍVEIS que já li.
Ps: no início os erros de ortografia (propositais) podem incomodar, porém, são eles que dão um toque a mais de realidade a tudo.
"Me diga como é o seu Deus, Celie.
Tá bom, eu falei. Ele é grande e velho e alto e tem uma barba cinza e branca. Ele usa roupa branca e anda discalço.
Ela deu risada. Por que você tá rindo? perguntei.
Porque é ele que tá na Bíblia branca dos branco.
Foi Deus quem escreveu a Bíblia, os branco num tem nada a ver com isso.
Então porque ele é igualzinho a eles, hein? ela falou. Porque a Bíblia é igualzinha a tudo que eles fazem, só tem eles fazendo isso e aquilo, e tudo que tem dos negro é o negro sendo amaldiçoado? (...) Você tem que tirar o homem da sua vista antes de poder ver alguma coisa. O homem corrompe tudo. Ele tenta fazer você pensar que ele tá em todo lugar. E quando você pensa que ele tá em todo lugar, você começa a pensar que ele é Deus. Mas ele num é. Quando você tiver tentando rezar e o homem se estatelar lá no fim, diga pra ele se mandar."