Lola444 27/09/2020Bem diferente do que eu esperava, mas incrívelQuando eu pensei em ler "A Cor Púrpura" eu meio que esperava algo mais ou menos como "O Sol é Para Todos", um livro que mostrasse a dor e o sofrimento sobre algum caso específico de racismo, mas eu me deparei com um livro tão diferente de tudo que eu já li sobre o assunto, tão singelo, até engraçado as vezes, uma história cotidiana sobre a vida de uma mulher preta em pleno Estados Unidos sulista entre os anos de 1900 e 1940 e suas percepções a respeito da sociedade em que ela estava inserida e sua própria vida.
O que dizer sobre Celie? Pelo amor de Deus, que personagem! Uma mulher que foi estuprada dentro de casa, depois entregue a um homem muito mais velho em casamento para basicamente ser sua empregada, brutalmente separada da irmã Nettie (que era a única pessoa que ela entendia como família), e mesmo assim a força do seu espírito é absurda, sua resiliência é imensurável. Celie é palpável, humana, real. Um personagem inesquecível.
O livro se divide entre cartas de Celie escritas para Deus (que são mais como uma espécie de diário) e cartas de sua irmã Nettie dirigidas para ela. A narrativa não tem exatamente um fio condutor, ele é sobre o cotidiano e vai mostrando um retrato do dia a dia durante esses quarenta anos, os altos e baixo e, sobretudo, o amadurecimento de Celie e de todos ao seu redor.
"A Cor Púrpura" é sim um livro que trata sobre o racismo, mas eu acho que o que me tocou mais foi sobre como era difícil (e ainda é) além de preta, ser mulher. Na minha opinião foi o livro que melhor explana a questão de que para uma mulher tudo é duas vezes mais difícil, a maioria dos homens pretos do livro também fizeram da vida de Celie um inferno, ela foi estuprada, humilhada, traída, espancada por homens pretos, não tinha voz, escolha, independência, ela era uma criada que servia para fazer sexo e cuidar das crianças e era só.
À medida que a leitura vai avançando é maravilhoso perceber as nuances do desenvolvimento pessoal dentro de Celie (grande parte disso graças à Shug), a descoberta da sua sexualidade (e homossexualidade - o que me surpreendeu bastante, a abordagem que o livro traz sobre é totalmente espontânea e naturalizada, adorei), como ela vai aprendendo a se impor, a tomar decisões por si, a falar, amar, viver, mas acho que a principal aprendizagem é quando ela passa a SE AMAR, a entender que ela SE BASTA, ganha sua independência tanto financeira como emocional e percebe que ela é muito mais forte do que ela acreditava ser, que é uma sobrevivente.
Um outro personagem que preciso enaltecer é Sofia, uma mulher forte demais, ao contrário de Celie ela nunca soube ficar calada, ser discreta, abaixar a cabeça, e isso lhe trouxe consequências dolorosas, mas ela nunca perdeu a força, talvez aprendeu a controlá-la melhor, percebeu que as vezes força não era sempre brigar e bater, mas manter a cabeça erguida mesmo nas piores situações. Personagem maravilhosa e necessária.
A razão pela qual eu não dou cinco estrelas para o livro é porque eu realmente me sentia um pouco mais desconectada da história quando a Nattie assumia a narração, não era sempre, mas muitos momentos me peguei pouco interessada na parte dela e só queria voltar para a Celie. Além disso o livro trouxe uma redenção para um personagem estuprador e abusivo, eu sei que eram outros tempos e que a mentalidade era diferente, mas para mim é difícil aceitar essa evolução que a narrativa tentou vender.
Bom, pra mim, "A Cor Púrpura" narra uma história extremamente feminina com cenas lindíssimas de sororidade muito naturais e bem construídas, o racismo é sim uma das dificuldades enfrentadas, mas a maior parte do livro nos mostra a perspectiva de uma mulher encarando isso e muito mais, a chamada "solidão da mulher preta" é muito bem abordada, as dores, as perdas, a submissão imposta, enfim, é um livro sobre autodescoberta, liberdade sexual feminina, empoderamento e independência (de todos os tipos) em uma sociedade que pessoas pretas eram consideradas sub-humanas, e as MULHERES pretas ainda se encontravam vários degraus abaixo disso. A vontade que eu tenho é de guardar a Celie em um potinho e proteger, mas lembro que ela não precisa disso, a força que ela tem é infinita, e tudo que ela merece é ser feliz. Ah, o final é emocionante DEMAIS, o coração parece que derrete.
Esse livro DEVE ser lido por muitas gerações, ainda que conte a história de uma época longínqua o poder feminino que ele emana segue atemporal e muito inspirador. Eu, uma mulher branca no século XXI, li e consegui me relacionar com o sofrimento da Celie, porque uma história bem escrita nos transporta, gera empatia e conseguimos visualizar e entender - ainda que nunca completamente - a dor do outro. Que livro, que história, que mulher!