Guilherme 28/10/2017
Das minhas impressões sobre História Sem Fim, de Michael Ende
História sem fim é bem conhecido pelo seu filme de 1984, marcante na infância da geração que cresceu, principalmente, nos anos 90. O livro, entretanto, publicado em 1979 pelo alemão Michael Ende, não é tão difundido, pelo menos no Brasil, embora seja tão ou mais esplêndido que sua adaptação cinematográfica. O enredo conta a história de Bastian Baltasar Bux, um menino com problemas em sua vida familiar, na escola e consigo mesmo e que, ao ler um livro que pegou de uma mercearia, ingressa, literalmente, nas páginas de uma história que o encanta: contada em um volume também chamado História Sem Fim, narra sobre o Reino de Fantasia e de como ele está sucumbindo para as trevas (ou para o nada). Para salvá-lo a princesa deste mundo dá para Atreyu, o menino protagonista desta história, a demanda de encontrar o bastião capaz de ajudar o reino.
Primeiramente, deve ser enfatizado o capricho do projeto gráfico, engenho não propriamente da editora, mas do próprio autor. Sejam as letras dispostas em duas cores, vermelha e verde, cada cor representando um universo; ou as ilustrações contidas em cada abertura de capítulo, com pesar de eu não ter descoberto se foram feitas pelo próprio Michael Ende; também por cada letra que inicia o primeiro parágrafo de capítulo não ter sido escolhida à toa, o que deve ter dado um trabalho para os tradutores. Enfim, pequenos detalhes que tornam a edição maravilhosa, tornando indispensável que se leia um exemplar físico, ao invés do eventual eletrônico, comum hodiernamente. É como se o autor, sem nem saber, já valorizasse a ideia de se ter um livro em mãos (não me entendam mal, não largo por nada o kindle, mas também nunca abrirei mão de folhear um livro).
Destaque também para a história, evidentemente. É contagiante seguir a jornada de Bastian em descobrir e desbravar um universo onírico de aventuras e perigos; conhecer personagens como Atreyu, um menino que carrega em si a bravura e integridade que se encontraria em um adulto, e seu dragão da sorte Fuchur, um acompanhante do qual todos queríamos ter ao lado; bem como apreciar o mundo de Fantasia, em sua particular e magnífica forma com suas diversas criaturas, de especiais tipos e raças. Tudo fruto de uma inventiva criação de Michael Ende que, em um livro com cerca de 400 páginas, conseguiu construir uma história e universo muito ricos, ao mesmo tempo que deixa possibilidades para outros caminhos imagináveis, embora estas sejam outras histórias, para outras ocasiões.
Não quero me ater a resumir a história, porém, pois o mais surpreendente para mim fora a experiência de imersão que esta obra provocou. Não só pelo capricho gráfico, que contém elementos que ajudam nesta tarefa, mas principalmente por História Sem Fim ser um livro que fala de livros, uma história que fala de histórias. Há certa metalinguagem, principalmente na primeira parte do livro, que ao assistirmos Bastian ler seu História Sem Fim e começar a sentir uma conexão dele mesmo com aquele universo, provoca em nós mesmos um sentimento igual de integração àquele livro, àquele mundo. Trata-se de uma leitura que nos coloca na mesma condição de Bastian, de expectadores participantes, provocando um escape para tal história narrada, sensação tão buscada quando lemos um livro. Se não bastasse a aventura divertida e emocionante que defrontamos, é possível reconhecer o culto que Ende faz à leitura e ao seu encanto de nos retirar da realidade.
Na segunda parte da história, percebemos um amadurecimento, tanto de Bastian quando do próprio enredo. Baltasar Bux começa a sair da passividade de mero leitor e protagonizar não somente a história que nós lemos, mas a que ele lê. Adentra em um campo onde de mero observador torna-se influenciador, sendo responsável pela história, por Fantasia, por seus companheiros e por si. Essa parte talvez seja a mais tocante da obra, pois conhecemos, junto com Bastian, o valor do bom senso, da amizade e do autoconhecimento. Sobre como nossas escolhas exigem um senso de parcimônia e probidade, pois afetam o mundo e as pessoas ao nosso redor. Trata-se de uma parte da obra que convida não só o protagonista, mas a nós mesmos a uma compreensão introspectiva, por via das páginas de um livro.
É uma obra rica em divertimento e aprendizado, que não me permite contá-la mais do que já o fiz, mas apenas incentivar que a conheçam por si mesmos, principalmente se for um jovem leitor. Durante a leitura, lembrei que, malgrado os inúmeros, talvez o atributo mais cativante da literatura ficcional seja sua capacidade de fazer o leitor se evadir da realidade. Trata-se da agradável experiência de restarmos suspensos no mundo ao nosso redor e realocados em um universo de onde nem tão cedo queremos sair. Tal jornada resulta mais especial quando de lá podemos voltar com novos conhecimentos, seja sobre a natureza das coisas, das emoções ou de nós mesmos. É verdade que nem todos os livros oferecem esse encanto, mas quando a sorte aparece, e foi o caso da obra em questão, relembramos o porquê lemos.
Ainda sobre ler, Freud nunca o fiz, mas há uma passagem que vi por aí, atribuída ao mesmo, que respalda bastante a leitura de fantasias e esta própria obra de Michael Ende: “A palavra e a magia foram no início a mesma coisa”.