Maltenri 27/09/2011
Mais do Mesmo
Corações de Neve, segundo livro da saga Dragões de Éter, foi escrito por Raphael Draccon em 2009. Nele, o autor continua as peripécias de seus personagens-chave: Anísio e Axel Branford, João e Maria Hanson, Ariane Narin, Snail Galford e Liriel Gabbiani. No entanto, muitos outros personagens são introduzidos à trama, como Ruggiero, Ferrabrás e Robert de Locksley. E é exatamente o mesmo Robert de Locksley que todos conhecem sob as alcunhas populares “Robin Hood” ou o “Príncipe dos Ladrões”.
Mesmo que o autor continue fazendo releituras de contas de fadas (tais quais Cinderela ou Branca de Neve), desta vez ele coloca a barra mais acima, decidindo revisitar alguns dos clássicos literários e cinematográficos (“Robin Hood” e “O Conde de Monte Cristo” sendo os melhores exemplos).
A trama recomeça alguns meses após os acontecimentos fatídicos do primeiro livro: Anísio sucede ao pai Primo como rei de Arzallum, Axel se prepara para o grande torneio de pugilismo, e o relacionamento entre João e Ariane amadurece. Amadurecimento é a palavra-chave do livro no que diz respeito aos protagonistas, pois é o que fazem no decorrer da narrativa, de forma mais ou menos brusca e violenta. Anísio começa seu reino de forma conturbada, ameaçando começar uma guerra ao libertar um dissidente político, Locksley. E eventos estranhos acontecem, afetando a todos os indivíduos do continente Ocaso, principalmente a chegada de emissários do oriente.
No entanto, a obra apresenta pouco a mais que Caçadores de Bruxas, principalmente no que diz respeito às idéias veiculadas.
A história é bem desenvolvida, com várias reviravoltas durante a trama. Continua sendo um pouco água com açúcar, bem ao estilo conto de fada, porém demais para o meu gosto - mas isto é um mero gosto, e não uma crítica propriamente dita.
O que me impressionou muito foi a evolução da qualidade narrativa de Draccon. Ele continua com um estilo leve, que pode ser facilmente lido, mesclando um vocabulário simples (porém muito mais rico que no primeiro livro) com frases fáceis e curtas. As descrições são muito melhores do que em sua primeira obra, tornando a leitura mais prazerosa e rica.
Outra importante evolução está no estilo narrativo: o narrador ainda é onisciente, e continua conversando com o leitor, porém com muito menos freqüência do que na obra anterior, preferindo deixar a trama transcorrer mais rápido. Assim, tem-se um narrador que não parece mais estar conversando com o leitor em uma taverna qualquer, mas sim algo mais próximo do tradicional narrador. Ainda há momentos em que o narrador dá sua opinião sobre os eventos e tenta fazer uma piada ou outra, porém estes momentos são bem mais raros do que no primeiro livro, tornado-o menos enfadonho.
Isto contribui para uma narrativa mais fluída, que prende melhor o leitor, sem quebras constantes de ritmo. Da mesma forma, os capítulos estão maiores, evitando cortar a cada minuto lido para um novo personagem.
Rafael introduz várias referências à cultura pop, e das mais variadas também: indo desde Shakespeare até Queen (que responde por um momento importante do livro, colocando a música "We Will Rock You” de forma interessante no desenrolar dos acontecimentos, sendo até importantíssimo), passando pelo estatuto e práticas do BOPE.
Falando em referências da cultura pop, é importante salientar que os amantes de Karate Kid, Rocky Balboa, os primeiros filmes de Jean-Claude Van Damme e Cavaleiros do Zodíaco devem adorar o torneio de pugilismo “Punho de Ferro”, que ocupa uma parte importante do livro, sendo um dos pontos principais da trama (ou talvez o mais importante): neste torneio, elementos dos quatro personagens estão presentes a cada momento.
No entanto, ainda resta muito a melhorar. O jovem escritor carioca continua com o hábito irritante de anunciar o que vai acontecer em seguida na sua obra, como os episódios de TV de algumas séries e novelas tanto gostam de fazer (algo como “fulano vai pagar caro por suas escolhas no próximo episódio”). Na TV, onde os episódios demoram dias, semanas e até meses para sucederem-se, isto é importante para prender o leitor. Em um livro, fica enfadonho: corta o ritmo de leitura e o suspense criado pela trama.
A história desenvolvida por Draccon é suficientemente boa para evitar estas artimanhas demasiadamente artificiais para prender a atenção do leitor, e cativá-lo a continuar.
O mesmo pode-se dizer da mistura entre mundo moderno e mundo medieval. Como no primeiro livro, há vários momentos em que o autor introduz elementos de nosso mundo atual no universo de Nova Éther. Isto continua descaracterizando o universo, e dificultando a imersão. Rap e gírias modernas, entre outras coisas, estão presentes na obra.
O autor começa a usar em excesso as onomatopéias, se é que podemos chamar colocar algumas palavras em Caps Lock de onomatopéias. O fato é que estão presentes, principalmente a partir da metade do livro. Onomatopéias são úteis em quadrinhos, onde somente observam-se desenhos e lêem-se diálogos, porém onde não há descrições. Porém. Não é porque se escreve GRITAR que a palavra muda de sentido: gritar significa gritar, seja a palavra escrita em minúsculas ou não.
Outro elemento negativo do estilo narrativo, mas que pode ser ignorado pelos menos detalhistas é o que chamaria de síndrome de poder oculto maior que o maior poder não oculto (elemento muito presente em shônen mangás como Samurai Deeper Kyo ou Cavaleiros do Zodíaco). Alguém invoca um tipo de poder, lei ou grupo estabelecendo este como inatingível; porém, pouco tempo depois, aparece outro poder, este secreto, que subjuga a antiga ordem e assim indefinidamente. É um artifício muito batido para ser sério.
No que diz respeito ao universo estabelecido por Draccon, ainda subsistem vários ilogismos e incoerências, que impedem o proposto de se tornar algo realmente brilhante. Por exemplo, as inconsistências entre um livro e outro: no primeiro, Axel levaria quase uma semana para percorrer a distância entre Andreanne e as Sete Montanhas, montado em um dos cavalos mais rápidos do mundo; no segundo, Locksley, martirizado por vinte anos aprisionado, leva muito menos tempo para percorrer uma distância parecida a pé.
Um tema importante do livro é a chegada de um oriente muito mais desenvolvido a um ocidente mais atrasado tecnologicamente, que ignoram quase tudo um do outro. Além da distância tecnológica entre os dois continentes, eles ignoram as culturas recíprocas. No entanto falam a mesma língua e já fora estabelecido contato entre os continentes previamente (por descobridores autônomos, é verdade, mas quando alguém descobre algo do gênero, parece lógico que as grandes potências mandem investigar).
O maior ilogismo está em um dos temas centrais da saga: a magia. Teoricamente todos temem e repudiam a magia como se fosse a peste, caçando-a como podem. No entanto, soldados do rei de Arzallum e mesmo leis de Arzallum permitem a existência desta no seio da sociedade.
O jovem brasileiro continua a veicular suas idéias de forma explícita, principalmente no que diz respeito à religião cristã. Desta forma, temos todo tipo de idéia que aparece: o Cristo (Christo, como o autor prefere escrever), avatar do criador e homem santo que vai renascer; profetas que devem mostrar a todos que fazem parte de uma criação divina; perdoar crimes de um padre para que este possa espalhar a fé; todo conhecimento vem do Criador, que recompensa os homens que o procuram; a fé move montanhas; a fé é a solução máxima, que fornece milagre aos merecedores; a ciência a serviço da religião.
Infelizmente este tipo de idéia vem macular uma bela história, como acontece com as “Crônicas de Nárnia”, o maior catequizador disfarçado de livro.
Da mesma maneira, ele continua dando morais feitas com frases feitas (“bendito é o homem que cresceu, mas que mantém em si a alegria de uma criança”). Não há nada de errado em tentar dar lições de moral, porém estas devem vir acompanhadas de raciocínios lógicos e argumentos, além de serem pelo menos um pouco originais (nem que seja na apresentação as mesmas). No livro, no entanto, elas são dadas diversas vezes sozinhas, como as frases feitas de biscoitos da sorte de qualquer restaurante chinês.
Outro defeito é a apresentação da humanidade, feita de forma completamente míope: libertar Locksley por conta de seus ideais puros, sem pesar os prós e os contras da ideologia; visitantes muito superiores tecnologicamente que não tem um pingo de desejo belicoso e conquistador; nativos que recepcionam estes visitantes calorosamente além de estarem pouquíssimo desconfiados e amedrontados.
São idéias muito bonitas na teoria, porém completamente irreais.
No final das contas, “Corações de Neve” é uma evolução na história e no estilo de Draccon, porém a mesma coisa no que diz respeito ao nível superior da leitura. Apesar de um pouco mais desapegado do extremo maniqueísmo de “Caçadores de Bruxa”, este ainda se encontra em diversos momentos do livro. Nos últimos momentos do livro, no entanto, o autor consegue desenvolver melhor sua argumentação, dando melhores resultados e idéias, algumas das quais são muito interessantes, mesmo se um tanto quanto utópicas. Lerei o último volume de Dragões de Éter com um pouco mais de curiosidade, não só pela história (essa sim realmente muito boa).