spoiler visualizarLeandro.Bonizi 19/12/2022
O livro e a jornada do herói
Esta análise é baseada no livro "A Jornada do Escritor", de Christopher Vogler, que descreve as etapas pelas quais os heróis passam em sua jornada, resumida em doze passos. Segue o link:
https://www.skoob.com.br/a-jornada-do-escritor-12522ed514995.html
Que por sua vez foi baseado em "O Herói de Mil Faces", de Joseph Campbell, que possuem desesseis passos. Segue o link: https://www.skoob.com.br/o-heroi-de-mil-faces-3242ed4160.html
Seguem-se as etapas:
1. O mundo comum; 2. O chamado à aventura; 3. Recusa do chamado; 4. Encontro com o mentor; 5. A travessia do primeiro limiar; 6. Provas, aliados e inimigos; 7. Aproximação da caverna secreta; 8. A provação; 9. A recompensa; 10. O caminho de volta; 11. A ressurreição; 12. O retorno com o elixir.
A terra dos meninos pelados conta-nos a história de Raimundo, um menino careca, com olhos de cores diferentes, um azul e outro preto. Por possuir essas características, sofria o que hoje chamamos de “bullying”. Quando o sofrimento torna-se insuportável, o menino foge para um mundo imaginário. Vejamos como Graciliano Ramos apresenta-nos as doze etapas da jornada do herói na história.
1. O MUNDO COMUM
Como acabei de citar, o livro conta a história de Raimundo, um menino diferente. Era careca e tinha um olho de cada cor. Por isso, as crianças do bairro riam dele. Seu mundo comum era sofrer a chacota dos outros meninos e viver isolado, conforme somos informados no início do livro.
"Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para assinar a carvão, nas paredes: Dr. Raimundo Pelado. Era de bom gênio, não se zangava, mas os garotos dos arredores fugiam ao vê-lo, escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado os cabelos dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura. (Alexandre e outros heróis, 2013, p.68)
(...)
Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando" (Alexandre e outros heróis, 2013, p.68).
2. O CHAMADO
O chamado, no caso de Raimundo, é interior, vem na forma de um “baque no coração”, quando os maus-tratos dos meninos da rua chegam ao insuportável para ele:
"Um dia...ouviu os gritos dos meninos escondidos por detrás das árvores e sentiu um baque no coração.
— Quem raspou a cabeça dele? Perguntou o moleque do tabuleiro.
— Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? Berrou o italianinho da esquina.
— Era melhor que me deixassem quieto, disse Raimundo baixinho.
Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida foi fechando o olho esquerdo, não enxergou mais a rua" (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 68 e 69).
3. RECUSA AO CHAMADO
Quando o “chamado” interior acontece, Raimundo vai, sem hesitação. Porém, logo após cruzar o primeiro limiar, já no primeiro encontro com os meninos pelados, acontece sua primeira provação. Os meninos riem dele porque lhe perguntam de Caralâmpia e ele pensa tratar-se de uma laranjeira. Então, Raimundo arrepende-se de ter aceitado o chamado. Foge, tenta retornar, conforme Graciliano escreve: Raimundo levantou-se trombudo e saiu à pressa, tão encabulado que não enxergou o rio. Ia caindo dentro dele (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 71).
4. ENCONTRO COM O MENTOR
Na ocasião em que Raimundo foge da sua primeira prova e dos meninos pelados, quase caindo no rio, conhece o seu mentor, na história. Trata-se do Tronco. Ele é o personagem mágico (um tronco falante e sábio) que oferece incentivos e conselhos para que Raimundo continue na sua jornada, não desista. O Tronco lhe fala:
"— Por que é que você se esconde? Está com medo?
— Não senhor. É que eles caçoaram de mim porque eu não conheço a Caralâmpia.
O tronco soltou uma risada e pilheriou:
— Deixe de tolice, criatura. Você se afogando em pouca água! As crianças estavam brincando. É uma gente boa.
— Sempre ouvi dizer isso. Mas debicaram comigo porque eu não conheço a Caralâmpia.
— Bobagem. Deixe de melindres.
— É mesmo, concordou Raimundo (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 71).
Mas é necessário destacar que esse mundo para onde o menino fugiu, Tatipirun, bem como todos os personagens que o habitam, não fazem parte do mundo real, são criação do próprio Raimundo. Falam, portanto, aquilo que o próprio menino coloca na boca deles. Os diálogos constituem, portanto, sob um certo ponto de vista, uma interlocução de Raimundo com ele mesmo. Sendo assim, Raimundo é seu próprio mentor e fala para si mesmo (através do Tronco) que precisa deixar de bobagem e enfrentar seus desafios. Não pode viver no isolamento, sempre se esquivando de enfrentar os outros. Ele é um ser social e precisa aprender a viver em sociedade.
5. TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR
Como já mencionei, acontece logo no início. Quando o sofrimento torna-se muito intenso, Raimundo procura refúgio no seu mundo de fantasia:
"Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tapirinun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de casa" (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 68).
7.6. ALIADOS E INIMIGOS
Os inimigos já se tornam evidentes no começo da história: são os meninos da rua. Muitos aliados surgem no decorrer da história, desde o início: o automóvel que lhe ensina o caminho, a laranjeira que lhe oferece uma laranja. No primeiro encontro, ele foge dos meninos pelados, porém os meninos partem à sua procura, virando seus amigos depois:
"— Por que você fugiu da gente?
— Sei lá, burrice. Julguei que estivessem troçando de mim.
Raimundo ficou acanhado, as orelhas pegando fogo” (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 73).
Dos meninos, o Sardento torna-se seu mais importante aliado. Conforme já mencionei, todos os personagens são criação do próprio Raimundo. Esse menino sem nome, o Sardento, aparece na história como aliado e como o “alter ego” do Raimundo. Ele é o “menino diferente” naquele mundo de fantasia. Todos os meninos são pelados e têm um olho preto e outro azul, menos Sardento. A Wikipédia explica o que é alter ego:
"Alter ego (do latim alter: outro; ego: 'eu') é uma locução substantiva latina, cujo significado literal é 'outro eu'. Cícero cunhou o termo como parte de seu discurso filosófico, no século I. Ele descrevia o alter ego como um amigo ou alguém próximo, em quem se deposita total confiança, um substituto perfeito. Em psicologia, uma pessoa dotada de alter ego é alguém que leva uma vida dupla. O termo passou a ser comumente usado no século XIX quando o transtorno dissociativo de identidade foi descrito por psicólogos. Na literatura, alter ego é um personagem usado intencionalmente pelo autor para apresentar suas próprias ideias" (https://pt.wikipedia.org/wiki/Alter_ego).
7. APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA
Está se aproximando o momento de Raimundo entrar na caverna para combater o seu inimigo (seu medo de viver em sociedade). Como explicado anteriormente, a aproximação da caverna pode significar o momento de descanso ou de preparação para o combate que se aproxima. Então, como um cavaleiro medieval que veste sua armadura, o menino despe-se de sua roupagem do mundo real e veste os trajes apropriados para a vida no seu mundo utópico, a roupa presenteada pela dona aranha.
"— Tenho ali umas túnicas no galho onde moro. Muito bonitas. Escolha uma.
Raimundo chegou-se à árvore próxima e examinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas vermelhas preparavam" (p. 72).
"— Eu nem sei se poderei vestir isso, começou hesitando (...).
Escolheu uma túnica azul, escondeu-se no mato e, passados alguns minutos, tornou a mostrar-se, vestido como os habitantes de Tatipirun" (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 73).
Agora, vestido de maneira apropriada, ele está realmente preparado para enfrentar seu inimigo.
8. A PROVAÇÃO
Assim que veste a túnica azul os meninos, que estavam a procura de Raimundo, se aproximam. Chegou a hora da provação: aprender a viver em sociedade, parar de fugir dos outros por medo de sofrimento.
"— Cadê o menino que veio de Cambacará?
Eram milhares de criaturas miúdas, de cinco a dez anos, todas cobertas de
teias de aranha, descalças, um olho preto e outro azul, as cabeças peladas nuas.
Não havia pessoas grandes, naturalmente.
— Cadê o menino que veio de Cambacará?
— Que negócio têm comigo? resmungou o pequeno alarmado. Parece uma
Procissão" (Alexandre e outros heróis, 2013, p, 73).
9. A RECOMPENSA
A grande recompensa de Raimundo, nesse conto de Graciliano, é o amadurecimento do menino. No começo da história, ele sofre por ser diferente e parte numa aventura de autoconhecimento em um mundo de fantasia criado por ele mesmo, onde todos são semelhantes, são pelados e têm olhos de cores diferentes. Ele cria esse mundo pois num mundo de iguais ele não seria discriminado. Contudo, ele aos poucos se dá conta que os meninos não são totalmente iguais. Há meninos brancos, negros, altos, baixos, magros, gordinhos. Há meninas. Há um anão. São todos diferentes, apesar das semelhanças, e é bom que seja assim. O amadurecimento fica claro quando é ele (justamente ele) que diz ao Sardento que seu projeto não faz sentido. O Sardento em várias ocasiões pergunta se Raimundo quer ouvir o seu projeto. Raimundo se esquiva de ouvir (ainda não está pronto). Quando finalmente aceita escutar o plano, explica que aquilo não tem cabimento, mostrando sua evolução interior. Eis o diálogo:
"— Quer ouvir o meu projeto? Segredou o menino sardento.
— Ah, sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
— Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
— Pra dizer a verdade, está.
— É feia demais assim?
— Não é muito bonita, não.
— Também acho. Nem feia nem bonita. É uma cara.
— É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças de água. O meu projeto é esse: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
— Para quê?
Ficava mais certo. Ficava tudo igual.
Raimundo parou sob um disco de vitrola, recordou os garotos que mangavam dele.
— Qual é a sua opinião? Perguntou o sardento.
Raimundo hesitou um minuto.
— Não sei não. Eles bolem com você por causa da sua cara pintada?
— Não bolem. São muito boas pessoas. Mas se tivessem manchas no rosto, seriam melhores (p. 76).
— Então, você acha o meu projeto ruim?
— Para falar com franqueza, eu acho. Não presta não. Como é que você vai pintar esses meninos todos?
— Ficava mais certo.
— Ficava nada!
— Era bom que fosse tudo igual.
— Não senhor, que a gente não é rapadura. (...) Tinha graça que o anão quisesse reduzir todo mundo ao tamanho dele. Como havia de ser?" (Alexandre e outros heróis, 2013, p.77)
E mais adiante no livro conclui: “Pois é, meu caro. Boa terra. Mas se todos fossem iguais ao anãozinho ou tivessem sardas, seria enjoada” (p. 77)
Nessa conversa com seu alter ego, Raimundo revela sua evolução. Se no início ele criou um mundo em que todos os meninos se pareciam com ele, agora revela seu aprendizado: as diferenças existem, ele deve aceitar-se e não esperar que os outros fiquem iguais a ele.
0. RESSURREIÇÃO
O Raimundo que chegou em Tatipirun, aquele menino que vivia isolado, conversando sozinho, “morre” e renasce, ressuscita, como um ser social. Ele vive toda a sua aventura em grupo. Com as crianças de Tatipirun ele conversa, brinca, explora os espaços enfim, interage todo o tempo.
11. O CAMINHO DE VOLTA
Em vários momentos da história, Raimundo fala que precisa voltar para estudar geografia. A geografia representa o mundo real. O mundo de Tatipirum não é real, não está nos mapas. Ele sabe disso. E sabe que em algum momento deverá voltar à realidade.
— Preciso voltar, murmurou Raimundo.
— Fique com a gente, aqui é tão bom...
— Não posso, gemeu Raimundo. Eu queria ficar com vocês, mas preciso estudar a minha lição de geografia.
— É necessário?
— Sei lá. Dizem que é necessário. Parece que é necessário. Enfim... não sei.
Aí Raimundo entristeceu e enxugou os olhos:
— É uma obrigação. Vou-me embora" (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 83).
7.12. RETORNO COM O ELIXIR
Mas quando o momento chega, ele não volta o mesmo, retorna com o elixir.
"Raimundo começou a descer a serra de Taquaritu... Caminhou muito, olhou pata trás e não enxergou os meninos que tinham ficado lá em cima...
Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-se chegando, muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calçada.
As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças que embirravam com ele brincavam na rua" (Alexandre e outros heróis, 2013, p. 85).
Raimundo volta um outro ser, volta transformado. O elixir ou o troféu é que ele volta preparado para viver em sociedade, preparado para conviver com as suas diferenças, preparado para enfrentar a realidade à sua volta. Talvez os meninos da rua continuem os mesmos, porém Raimundo retorna com o autoconhecimento para aceitar-se como é.