Henrique Fendrich 17/05/2020
A originalidade narrativa é o ponto forte do livro. Ele começa com o relato de um morto, o que, para nós, não é grande novidade desde o Brás Cubas, mas há depois alguns momentos de soberba criatividade, como quando a voz principal é a de um cão (Kafka fez isso também, é verdade), a de uma árvore, a do dinheiro, a da morte, a do cavalo, a do próprio diabo, entre outras. Quase todos esses momentos nascem a partir de um satirista que improvisa histórias a partir de um desenho que lhes fazem em um café.
Não se trata da trama propriamente, que, contudo, também é composta pela alternância da primeira voz entre os personagens, com apelos à metalinguagem e sem as limitações da nossa realidade física – o encontro com Alá no céu, por parte de um personagem morto, é um desses momentos igualmente criativos.
Mas o livro é, em termos de enredo, sobre a atividade de pintores miniaturistas em fins do século XVI, vivendo o conflito entre manter o legado da pintura que reverencia Alá e a outra, europeia, que despontava como uma ameaça herética.
Há muitas discussões e descrições de pinturas e essas não estão entre as partes mais agradáveis de se ler – em mim, ao menos, fica a impressão de que seria preciso “ver” alguma coisa dessas tantas que são descritas, mas, por mais que se fale em pinturas, não há uma única no livro todo que possa “auxiliar” o leitor – isso, é verdade, engrossaria um livro já bastante grosso, mas seria algo que me satisfaria mais do que ler descrições e relatos que, por vezes, chegaram a ser enfadonhos.
Há um tanto de mistério na história, crimes, romance e descrições mais cruas de atividades sexuais do que se imaginaria em meio a uma cultura marcada fortemente pela religião.
É também um mérito que o universo antigo da Turquia, com sua realidade tão diversa da nossa, possa hoje ser lida pelos ocidentais.
Alguns trechos que me agradaram durante a leitura, a ponto de eu registrá-los:
“- Não se esqueça do seguinte: quando o fogo do amor nos devora antes do casamento, o casamento vem apagá-lo e não deixa mais que um triste amontoado de cinzas, enquanto o amor que nasce depois do casamento também acaba se apagando, mas para ceder lugar à felicidade. Apesar disso, há uns imbecis que se apaixonam antes e que lançam em vão seu amor nas chamas. Isso tudo por quê? Porque imaginam que o amor é o que há de melhor na vida.
- Se não é ele, o que é?
- A felicidade, ora! O amor, assim como o casamento, nos ajuda a alcançá-la: é para isso que servem um marido, uma casa, filhos, um livro”.
"De repente, o mundo se apresentava a mim como um imenso palácio cujos aposentos se comunicam por mil e uma portas escancaradas, e podíamos passar de um aposento ao outro valendo-nos das nossas lembranças e da nossa imaginação. Mas a maioria das pessoas é preguiçosa demais para fazer uso desse dom e prefere ficar encerrada sempre no mesmo aposento".
E tem ainda o personagem que morre, encontra Alá e pergunta:
"Qual o sentido disto tudo... deste mundo?
'Mistério', ouvi em meus pensamentos, ou talvez tenha sido 'miséria', mas não tenho certeza".