Marcos Antonio 16/02/2021
Isto é uma parábola
Gostaria de fazer uma resenha mais aprofundada deste livro em outro momento, mas por enquanto compartilho as observações mais interessantes que fiz durante a leitura deste conto do magnífico Hans Christian Andersen.
1) Por vezes, a opulência e o brilho das coisas que temos e que nos rodeiam nos impedem de ver as belezas mais profundas, mais interessantes de nossas vidas, que estão geralmente nas coisas simples.
- Dentro disso ainda fico refletindo sobre a natureza humana de, depois de encontrada a beleza natural e simples, rejeitá-la por seu caráter livre e trocá-lo por um pássaro de porcelana e jóias. Isso acontece nas nossas vidas também, a gente troca as coisas simples e belas por outras que nos parecem tão belas, mais rebuscadas, visualmente atraentes, que enfeitam melhor os nossos palácios. Mas não cantam se não houver quem dê corda nesses pássaros de porcelana.
2) Temos a tão feia mania de querer que tudo que é belo e que nos dá prazer esteja preso do nosso lado. É uma confusão sobre o amor. Parece que dar tudo (luxo, servos e gaiola de ouro) é suficiente, mas como vimos no final: o amor também exige liberdade. Andersen entendeu o amor assim, é provável. O livro foi escrito depois de uma decepção amorosa, estava apaixonado por uma cantora. Mas entendeu que o amor também é deixar ir, se for preciso.
Vejo também uma crítica muito forte ao Positivismo e a Ideia de que o progresso científico e industrial no Século XVIII em diante.
A ideia de Progresso nos fez rejeitar o mistério da vida e da natureza, suas frequências e periodicidades próprias em inversa valorização das máquinas, dos cálculos e de tudo que pode ser controlado por nossas mãos, estudado, apreendido de qualquer forma.
O mestre de música demonstra isso:
"Nunca se pode dizer qual a música que o pássaro verdadeiro vai cantar, mas com o artificial esse problema não existe. É possível abri-lo, ver como ele foi montado, como funcionam as engrenagens, os cilindros, perceber o poder da inteligência humana que o criou, descobrir de onde vem a música"
Veja que neste trecho a observação que fiz anteriormente fica bem clara agora: é a rejeição do mistério e da natureza, ascensão do antropocentrismo e da ideia de que o homem em todo seu poder e inteligência pode dominar as coisas, pode dominar o mistério, pode dominar a natureza, pode colocá-la toda ao seu comando, escolher que música o Rouxinol vai tocar.
Só o pescador, na sua simplicidade, sabe que falta alguma coisa naquele canto.
Na verdade, desde o começo da história, são só as pessoas simples que entendem da beleza que o Rouxinol canta, são somente elas que o perceberam nos bosques, nas árvores; o Rouxinol sabe disso, ele sabe que precisa ir cantar em outros lugares, não pode viver em Castelo.
Hans teve uma infância muito difícil e simples, ele entende bem o que está escrevendo. Existe aí também o ideal da tradição liberal em ascensão pela Europa, segundo o qual os homens são todos iguais tal como Deus os criou.
Também estive pesquisando, e é verdade que: Hans trata bastante do sofrimento e da morte em seus contos, fazendo críticas a sociedade em que o prazer é objetivo número um. O conto está carregado de um sentimento quase religioso e das reflexões sobre suas decepções amorosas.
No fim, o ideal positivista cria dependências, é que as engrenagens também acabam, as máquinas param de funcionar, e todo luxo e matéria ficam, o canto pára, a tristeza e o silêncio assumem o espaço, nenhuma porcelana pode salvar ninguém aqui. O final desta história não é bem a vitória da vida sobre a morte, é uma entrega ao Mistério. Eu não tenho certeza se o Imperador estava mesmo vivo quando os seus servos abriram a porta, pra mim essa é uma forma bonita e poética que Hans Andersen encontrou, é uma metáfora dentro da parábola, acredito que o triunfo e o brilho do Imperador nesta última parte residem justamente no seu encontro final com o Mistério - que ele ignorou por tanto tempo, mas aí nos seus últimos minutos de vida reconhece seus enganos, redime-se e submete-se, deixando de lado toda sumptuosidade, toda aparência, diante do gracioso canto do Rouxinol na janela e a luz do Sol que vai chegando. Ele não é mais Imperador, ele está diante do poder.
É a descoberta final.