Henrique Fendrich 25/07/2020
Qualquer apreciação literária que se faça sobre um livro como esse é descabida. Não se trata de um livro de literatura, mas de um livro sobre a vida e sobre a humanidade – um livro que expõe coisas que nós já achávamos que havíamos superado e que fariam parte apenas de um passado remoto.
E, no entanto, os episódios de fome, de violação de direitos básicos, de tráfico humano, de estupros, de perseguições e de diferentes formas de violência aconteceram há alguns poucos anos. Somos contemporâneos de todas as horríveis coisas relatadas por essa moça que hoje ainda tem apenas 26 anos.
Há o processo de lavagem cerebral na Coreia do Norte, mesmo em um cenário onde a fome se alastrava por todo o país. Há a fuga para a China, na esperança de que ali se encontraria a liberdade, mas o que havia era uma terrível cadeia de atravessadores, todos, todos, todos interessados em estuprar qualquer fugitiva – mesmo uma garota de 13 anos.
Há a perda da inocência, há a descoberta de que também ali naquele país não seria possível encontrar a liberdade, há a tentativa de fugir para outro país, há o risco de ser descoberta e de ser obrigada a voltar para a Coreia do Norte – antes a morte, antes a morte, e ela esteve preparada para se matar em várias oportunidades.
Há um pai que morre precocemente e é sepultado em uma montanha isolada, há uma mãe que se sacrifica pela filha, a mesma mãe que é espancada pelo novo namorado, há uma irmã que passa intermináveis anos desaparecida.
E em algum lugar há o vigor de Yeonmi, que teve medo, que teve vergonha, que foi julgada, que foi desacreditada, que foi caluniada, que sofreu xenofobia, que teve que aprender todo o ensino básico de novo, mas que, contra as expectativas, se sobressaiu, e foi aprendendo, e foi lendo, ah, como gostava de ler, lia mais de 100 livros por ano, e descobria então que o mundo em que acreditara até então era uma ilusão e que havia outro, mais livre.
Seu destaque fez com que se tornasse porta-voz de outras pessoas, de outras famílias que passam pelas mesmas agruras, e é nisso que ela ainda trabalha, sendo que, ao se olhar para qualquer foto dela postada em redes sociais, vem o pensamento: “Meu Deus, não acredito que ela sobreviveu!”. Como avaliar, como dar estrelas para uma história de vida como essa?
O livro de Yeonmi não é algo que possa ser avaliado por critérios como gosto pessoal: é algo a ser assimilado e incorporado às nossas posições no mundo contemporâneo.