Michele Soares 26/01/2021
Uma canção para o cisne
Antes de mais nada, eu lamento profundamente que a imagem do silêncio como entidade de certa forma eloquente tenha se banalizado, porque ela, como toda imagem e expressão partilhada por uma comunidade, corre o risco de ser aplicada em situações menos dignas de gravidade do que a sua natureza, de fato, exige. "Estou morrendo!", grita um dos jovens risonhos que compõe a massa viva de braços e pernas que anda na calçada oposta a minha. É óbvio que ele não está mesmo morrendo e, caso estivesse, teríamos que olhar duas vezes e buscar confirmação, antes na expressão do seu rosto, do que propriamente nas suas palavras, tamanha a facilidade com a qual se solta uma frase tão grave em um contexto tão leve.
Acredito que algo semelhante ocorreu com a imagem do silêncio, essa entidade poderosa, que, segundo muitos, fala o que mil palavras não conseguiriam, e agora em um momento de verdadeira emoção, sinto que o silêncio, enfim, conseguiria expressar melhor o que sinto ao terminar a coletânea dos ultimos contos escritos por Sir A. Conan Doyle acerca das suas amáveis e curiosas criaturas, Sherlock Holmes e dr. John Watson. Mas, como já antecipei, a tal da bendita expressão já criou raízes no banal e para tirá-la de lá, nem mil guindastes - é por isso que sou obrigada a escrever.
Seria uma grande mentira se eu dissesse que não sou emotiva, porque Deus, sim, eu sou. Então espero que sejam capazes de imaginar como foi catártico ler as palavras de A. Conan Doyle, logo no Prefácio, pedindo ao leitor que se despedisse de Sherlock. Como? Como? Este autor que faz o favor de se apagar dos próprios livros, creditando todas as escolhas e seleções narrativas, não ao próprio gênio, mas ao de um personagem, um tal médico escritor, do tipo que ele próprio nunca chegou a ser. Este autor, que muitas vezes entrega até mesmo o seu prefácio para os personagens (e quantos não foram os prefácios assinados por Watson!), como se tivesse pressa em passar a responsabilidade narrativa adiante. Este autor, de repente surge das trevas de sua narrativa, pedindo-me para me despedir? Ele, que me dá a mão para logo em seguida soltá-la de forma abrupta e pouco cortês? O tonel das Danaides parece convidativo perto daquilo que o autor nos admoesta a fazer. Não. Isso é mais complicado.
Apesar de serem os últimos contos sherlockianos, ainda podemos extrair algumas inovações e observações, sobretudo as que dizem respeito à estrutura narrativa. Minha impressão de leitura é a de que o autor reservou alguns destes contos para experimentar transitar por novos pontos de vista, assumindo, inclusive, o seu próprio. Conforme avançava na leitura de cada história, eu ia, como sempre, marcando as que se destacavam aos meus pobres olhos e percebi que a lista ia se alongando cada vez mais. Tanto em "A aventura do soldado descorado", quanto em "A aventura da juba do leão" o narrador não é outro se não o próprio homem, o próprio Sherlock! Imaginem minha euforia. São bons contos, de fato. Já em "A aventura da pedra mazarin" o narrador, arrisco-me a dizer, seria o próprio Conan Doyle, que assume neste conto aquela voz impessoal e onipresente que ocupa pelo menos um terço de alguns dos romances do detetive. Esta voz anônima e impessoal se coloca de forma curiosa neste conto e, como nada é gratuito, entendemos que se trata de mais uma necessidade narrativa, um experimento, acerca de uma narrativa que se constrói na ausência ? de Watson, certamente, e também do próprio Sherlock, que em dado momento se retira para o seu quarto, a fim de tocar o violino, enquanto faz a trilha para os criminosos que discutem no cômodo ao lado, na sua própria sala de estar. É um conto curioso este no qual nem sequer chegamos a deixar o apartamento da Baker Street 221B. Por fim, destacaria também os contos "A aventura do vampiro de Sussex" e "A aventura da mulher velada", ambos protagonizados por mulheres, cujas histórias estão mais para tragédias do que para crimes reais, de modo a oferecerem a boa dose de páthos que compõe as melhores narrativas. "A aventura do cliente ilustre", conto que abre a seleta e que gravita mais em torno da ação que em torno do mistério, também me cativou ? o que é uma vantagem considerável diante do último conto, o qual, ao menos esperava eu, que fosse encerrar a narrativa de forma mais gloriosa e definitiva. Trata-se antes de um caso dos mais comuns, na medida, é claro, em que o "comum" pode se aplicar às andanças deste detetive consultor e deste médico biógrafo que tanto me cativaram. Para as últimas notas desta canção do cisne, o desfecho do livro parece querer convidar o leitor à uma releitura do conto "Sua última mesura: Um epílogo para Sherlock Holmes".
Ao fim de tudo, eu gostaria que ele fosse real, este tal sr. Holmes, mais real do que o professor Joseph Bell que inspirou Conan Doyle. Assim, talvez ele pudesse ver com os raros olhos risonhos que a sua mesura orgulhosa seria retribuída com outra igual, mas em larga escala, pelo grande público que o assiste.