Naty 08/12/2016
Mais um livro de Clarice para minha lista
Esse é o terceiro livro que leio da Clarice. O primeiro que li foi na oitava série, Laços de Família. Lembro-me que tive o maior trabalho de entender cada conto e de adentrar no que a autora queria passar. Sinto, como muitos, uma dificuldade imensa de entender a mensagem escondida em cada um de seus contos, mas, quando entendo, percebo a inteligência na construção dos tais, a criatividade, mas também a forma como essas leituras causam um estranhamento ao leitor.
O segundo livro que li dela foi A Hora da Estrela e de novo eu senti certa dificuldade em perceber porque aquela história era tão bem vista.
Depois dessas duas experiências, eu já sabia, mais ou menos, o que eu iria encontrar nesse outro livro de contos que leio dela. Se alguém me perguntar se gosto dela como autora eu diria que não, mas acho que identificação é algo particular. Quanto a seus textos, compartilho o sentimento inerente em alguns, mas em outros não me sinto totalmente pertencente aos sentimentos enlaçados no enredo.
Vou explanar cada um desses contos individualmente a seguir:
1-Os desastres de Sofia
Esse foi um dos contos que mais gostei e retrata uma menina que abusava seu professor constantemente, no entanto, no decorrer da obra, atitudes que para nós pareceriam bons sinais se tornam fatais para aquela menina.
“Amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos.” Nesse trecho percebe-se que a menina tem uma visão de seu professor como um homem que, mesmo com potencial, resigna-se à vida e a aceita.
“Eu sacudia dos ombros todos os meus deveres e dela saia livre e pobre, e com um tesouro na mão.” A menina tem uma visão um tanto deturpada das coisas, mas isso acaba espantando o professor que acha as ideias da menina engenhosas e, ao parabeniza-la, acaba destruindo as ideias dela de esperança nos adultos. Ele destrói as esperanças dela no seu futuro eu.
“Eu vi dentro de um olho o que era tão incompreensível quanto um olho. ” A menina começa a se magnificar ao perceber a mudança que causara no professor através de um texto mentiroso, de uma fábula infantil. A partir daí ela provoca um sorriso nele que nunca havia antes sorrido. Com isso, ela sente a tal da epifania tão comum em textos da Clarice.
“Eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não o merecer, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraia” Li uma resenha sobre esse conto e nela estava explicito que isso é um traço um tanto auto biográfico já que a menina percebeu, a partir daí, o poder de seus textos e como ela poderia mudar a vida de pessoas com os seus escritos mesmo que ela os acha-se mera mentira. “Ele matava em mim, pela primeira vez, a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras. ”
2-A repartição dos pães
Esse conto trata-se apenas de um banquete dado de graça por um grupo de desconhecidos à pessoas também desconhecidas e dá para perceber nele uma grande aparência à repartição dos pães ou a ceia de Jesus, ambos fatos bíblicos.
“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. “
“Pão é amor entre estranhos”
Acho que esse conto traz muito o valor da gratuidade de ação e de sentimento, o poder de verdadeiramente amar ao próximo como a si mesmo. Além disso, como agir dessa forma causa certo estranhamento e constrangimento nas pessoas inseridas em um mundo tão capitalista em que tudo tem um sentido e um valor. “Não podia ser para nós. Era uma mesa para homens de boa vontade. ”
3-A mensagem
Dois jovens tornam-se amigos e eles são um tanto que esquisitos. Eles se acham acima dos outros, pelo menos na minha compreensão. O fato que proporciona o encontro de ambos é que eles sentiam angústia e a menina acaba expondo isso e eles percebem que carregam semelhanças um no outro e passam a se relacionar. A epifania desse conto vem através de uma casa também angustiada que eles veem e, enxergando-se naquela casa, despertam de seu relacionamento que já estava um tanto que frio e partem cada um para o seu caminho.
“Embora, se ambos não tivesse cuidado, o fato dela ser mulher poderia de súbito vir à tona. “ Percebi nessa frase que ele acaba vendo ela como um companheiro e não como uma mulher. Sua amizade é frágil na medida em que eles não se enxergam plenamente como de sexos opostos, mas indivíduos singulares, mas que partilhavam de pensamentos e características um tanto que comuns. “Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes, forçando uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se repetiria e sem nem ao menos se amarem. “
“E havia aquele ódio contra o mundo que ninguém os diria que era amor desesperado e era piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que de repente podia se quebrar denunciando duas caras que se consternavam porque eles não sabiam como se sentar com naturalidade numa sorveteria”
A mulher, na época de Clarice, era diminuta em relação ao homem e ele nunca enxergou ela assim até que ambos viram a casa. “...já quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo pressentindo a submissão, corpo sagrado e impuro a carregar” “Agora, enfim sozinho, estavam sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam ensina-lo a ser um homem. “
Para mim, Clarice quis criticar nesse conto a questão da visão que o homem passa a ter da mulher quando vai crescendo. Ele vai aceitando a mentira que a sociedade os joga de que ele é maior que ela sem lembrar que ambos sentiram angústia, a mesma angústia.
Esse também foi outro conto que gostei bastante.
4-Macacos
Nesse conto a senhora da casa compra uma macaquinha para seus filhos, mas ela acaba ficando doente e para sobreviver precisava de? De? De oxigênio. Estranho, né? E o oxigênio que respiramos? Pois é, a macaca morre por falta de oxigênio e os médicos dizem a mulher que ela não deveria comprar macaco na rua, pois a maioria deles têm doença e é aí que essa mulher cita algo muito interessante: “Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia de amor”
Esse conto foi meio difícil para mim pelo fato de eu acha-lo um tanto que banal, mas pensando melhor e focando na questão do oxigênio que tanto me admirava acabei tendo essa interpretação: a macaquinha não pertencia ao meio urbano, ela precisava de ar puro de liberdade, ar de floresta, e foi por isso que ela morreu. Parece banal, não parece, mas na verdade isso se interliga com todo o resto da obra.
A macaca era fazia parte da tal legião estrangeira que fala o título. Ela não pertencia àquele lugar. Ela era diferente. Ela o estranhava. A obra é tomada de exemplos assim. Os jovens do conto A Mensagem eram assim, Sofia era assim e o sentimento de estrangeirismo no conto A Repartição dos Pães também é esse.
4-O ovo e a galinha
Esse conto é um dos mais complicados de todos. O leitor é instigado a descobrir como um ovo pode ser tão significante na cabeça da dona de casa narradora da história. Esse ovo tão banal é utopizado de tal forma que, se foi usado de forma conotativa, não se sabe o que ele representa e, se foi usado de forma denotativa, eu tenho razão e Clarice é meio louca.
“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido”
“Entendê-lo não é o modo de vê-lo”
“A galinha é o disfarce do ovo”
A própria Clarisse, em entrevista, diz não entender o significado desse conto, então, considero ele como um enigma fadado a um infinito de interrogações irresolutas.
5-Tentação
Aqui, novamente, aparece o estrangeirismo já que a protagonista estava “Numa terra de morenos” e nessa terra “ser ruivo era uma revolta involuntária”. Até que ela vê um Basset ruivo e tem uma epifania; ela não estava mais só. O cachorro, para espanto do leitor, também tem a mesma epifania da menina, mas ambos têm que se separar; é um amor impossível.
6-Viagem à Petrópolis
Esse conto traz a história de uma velhinha que é rejeitada por onde ela vai e pouco é vista. Ela é tão invisível socialmente que as pessoas que colocam ela dentro de sua casa se batem como ela e se assustam por não lembrarem que ela estava ali. Depois de um tempo, ela é mandada para outra casa e recebida muito mal. “Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu! “ .
Não posso negar que ela é um tanto estranha e, de novo, estrangeira em sua própria terra. “Não parecia compreender que estava só no mundo”. No final: “A velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu”.
Como sempre, Clarice traz protagonistas velhos para sua história e mostra como esses são maltratados e colocados em uma espécie de mundo à parte. Eles também fazem parte dessa legião estrangeira do título.
7-A solução
Esse conto também é um tanto engraçado. Nele, Almira, gorda, gosta de ser amiga de Alice, magra. No entanto, Alice não gosta de Almira, apenas a suporta até que um dia Alice estava chateada e Almira não saia do pé dele querendo saber o porquê de sua angústia e é aí que Alice para a amiga deixar ela em paz e chama Almira de gorda. Esse foi o maior erro de Alice. No fim Almira está na cadeia e Alice na UTI por causa de um garfo na garganta.
É na cadeia que Almira se sente feliz para surpresa do leitor. Durante quase todo o conto, ela é comparada a um elefante como nesse trecho: “Ninguém se lembrou que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis”.
Não sei o que tirei desse conto. Para mim, ele foi um dos mais vagos. Percebe-se, novamente, que Almira é estrangeira onde vive e a solução, por incrível que pareça, era ela ir para a prisão. Um tanto que louco, não? Um tanto que Clarice Lispector.
8-Evolução de uma miopia
Esse foi um conto que chamou muito a minha atenção. A questão de que não só com os olhos que se enxerga, mas com os sentidos além de outros conceitos permeiam essa história de um menino que se importa muito com o que outros vão pensar e trama, a partir do que sabe das respostas humanas a suas palavras, formas de parecer o que bem lhe apetecer aos olhos do outro até que tem que ir para a casa de sua prima e planeja cada forma de agir para alcançar o que quer. O que acontece e o que o assusta é que tudo não é nada do que ele esperava. A prima tem um dente de ouro, a prima tem um dente de ouro, eeeepppiiffffaaaannniiiiaaa!!!
Sim, ele vai ter uma epifania com isso. “De algum modo pairava acima da própria miopia e a dos outros”. “Ele iria brincar de não ser julgado: por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria.”
Esse conto trata muito do que já falei acima além da questão da estabilidade e da instabilidade. O menino acha que sabe lidar perfeitamente com o que instável, mas isso o torna propenso a não entender o que é estável e, às vezes, até o que é instável. Difícil, né?
A questão que envolve a prima também é interessante. Ela quer ter filhos, mas não pode, então, trata ele como um de seus filhos. “O dia inteiro...ela exigindo dele que ele tivesse nascido dela. A prima não queria nada dele senão isso...Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável”
“E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo...Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar.”
9-A quinta história
Aqui, Clarice mostra as múltiplas formas que um autor pode narrar uma história ao contar como matar baratas de inúmeras maneiras. Foi bem interessante, mas nos remete mais ao fazer artístico.
10-Uma amizade sincera
Nesse conto, a amizade entre dois garotos é tão sincera que eles não têm mais o que falar e se separam. No início tudo era divertido, mas depois eles não tinham mais o que conversar, pois já haviam sido sinceros em tudo. Passam, então, a fazer coisas fúteis e, por fim, se separam.
“Ele a quem eu nada podia dar senão a minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. “
11-Os obedientes
Eu DETESTEI esse conto. Em suma, dois velhos obedecem a todas as regras e convivem junto a muito tempo até que a relação se torna cansativa e ambos querem fugir daquilo mais são obedientes demais para isso. A obediência passa a ser para eles uma clausura. No entanto, um dia a mulher come uma maça, quebra um dente, se olha no espelho, percebe o quanto está velha e triste e pula da janela. Que trágico.
Percebi que ela critica com isso relacionamentos que já estão tão fadados ao cotidiano que fazem mal aos participantes do mesmo, mas não gostei da forma como ela abordou isso. Na verdade, Clarisse costuma olhar relacionamentos mais como uma clausura que como uma amizade ou algo saudável o que eu não concordo também.
12-A legião estrangeira
Esse conto dá nome ao livro e conta a história de uma mãe de família que se vê seguida pela filha da vizinha a qual, criada numa família soberba, quer ensinar a mulher como ela deve fazer cada coisa e, para nossa surpresa, acaba acertando muitas vezes no certo a fazer. Era como se a menina não fosse uma criança; ela era criada com uma dureza que a fazia parecer um adulto até que ela tem uma epifania com um pintinho que a mulher tinha comprado e vai brincar com o pintinho.
É como se Clarisse trouxesse o nascimento de uma criança sendo ela criança. Além disso, aquela mulher se torna praticamente uma estrangeira em sua própria casa e a menina passa a domina-la de certa forma mesmo que ela negue.
A menina também é “estrangeirizada” pela protagonista que dá a ela um ar de estranha e, por isso, afirma no final: Ofélia é que não voltou, cresceu. Foi ser a princesa Hindu por quem no deserto sua tribo esperava.
“Diante de meus olhos fascinados...ela estava se transformando em criança”
Esqueci de acrescentar que o pinto morre.
Concluo, enfim, essa resenha enorme e trabalhosa de mais um livro de Clarice Lispector.