spoiler visualizarRonaldo Thomé 07/12/2021
O Livro Proibido de Clarice Lispector
Esta é uma leitura especial para mim, porque trata-se do primeiro livro que li em um projeto conjunto – o do canal Vra Tatá, da Tarcila Tanhã. Basicamente, o projeto consistiu na leitura conjunta da obra, como uma preparação para a peça “Que Deus Venha”, feita pela Tarcila, que é atriz e produtora de conteúdo. As leituras dela são bastante diferenciadas – ela dramatiza os textos, tanto por meio de atuação como cenário e figurinos.
Porém, retornando ao livro em si – a escolha foi feita pelos membros e apreciadores do canal, entre os muitos livros de contos de Clarice, e o resultado foi esse belíssimo A Via Crucis do Corpo. É um livro menos conhecido do trabalho da escritora, e que engloba temas desafiadores: o prazer, a libido, a sexualidade, o crime, as obsessões amorosas. Não raro, houve comentários de pessoas associando a obra aos textos de Nelson Rodrigues.
De fato, o livro causa estranhamento para quem conhece a obra de Lispector, porque os contos oscilam muito, mas também porque a temática da escritora (em geral mais reflexiva), aqui, se encontra mais contida. Em compensação, ela adota um tom mais pesado, sujo, marginal, quase carnívoro, que confere ao livro um tom único na sua carreira.
Dito isto, prepare-se para algumas das maiores surpresas que você vai ler dentro do universo clariceano: há contos que unem o cômico ao trágico (o excelente “O Corpo”, quase um roteiro para Pedro Almodóvar!) ou mesmo ao sádico (“A Língua do P”); a clássica união do desejo com a tristeza (“O Homem que Apareceu”); a sátira à religião e à devoção (“Via Crucis”, conto que parece bem deslocado, mas que se encaixa por seu tom de paródia – e final melancólico). A sátira religiosa permanece no sufocante “Melhor que Arder”. “Ele me Bebeu” é um conto belíssimo que fala sobre retirar as máscaras, as maquiagens com que se encara a vida. “Por Enquanto” forma um contraste sombrio com “Dia Após Dia”, quase como uma noite escura sendo sucedida por uma manhã caótica. Algumas histórias envolvem tabus dramáticos até hoje, como “Ruído de Passos” (masturbação feminina) ou “Mas Vai Chover” (o uso de bens materiais como moeda de troca íntima).
Meus contos favoritos foram, nessa leitura, o deslumbrante “Praça Mauá”, onde duas personagens – uma cis e outra trans – estabelecem um tenso duelo inesperado, e o sensacional “Miss Algrave”, uma das mais belas alegorias da sexualidade feminina que já li. Por incrível que pareça, Clarice parece unir o horror cósmico com a sensualidade para narrar o desabrochar do desejo – algo como se Anais Nin e H.P. Lovecraft tivessem unido forças num conto.
Enfim, este é aquele clássico livro “diferentão” da carreira de uma autora, quase como “A Noite Escura e Mais Eu” me deu a impressão de ser. A sua relação com ele dependerá de o quanto você está acostumado a ler esse tipo de literatura, mais suja, com personagens atrevidos e um toque de humor cruel. Fofocas de bar, conversas de esquina; aqueles casos de traição e morte que ganham a boca do povo – isto é o que você encontra aqui, neste que, pela temática e força, costumo dizer que é O Livro Proibido de Clarice Lispector!
Indicado para: quem quer conhecer os efeitos sobre o desejo no corpo, na mente e vida das pessoas.
Nota: 10,0 de 10.
Dica: leia aos contos ouvindo a narrativa do projeto, bem como os belos comentários de uma grande atriz - https://youtube.com/c/VRATAT%C3%81oficial