Kizzy 09/04/2019
Continuação é continuação
Kenn Follet faz de “Mundo sem fim” uma continuação de seu grande sucesso e uma das minhas obras preferidas “Os Pilares da Terra”. Desenvolvendo uma trama muito parecida com a primeira, na vida dos descendentes de Tom e Jack Builder e Aliena, dentro da prioridade do Grande Philip 200 anos depois, o autor repete a fórmula de ótimo texto, grande potencial descritivo, roteiro bem amarrado, personagens fortes e principalmente contexto histórico narrativo.
Follet escreve muito bem. Me surpreende a forma natural com que ele confere profundidade aos seus personagens. Principalmente os secundários. Nessa obra me chamou atenção a construção de Philemon. O filho de Sem Terra, que era apenas o irmão do quarteto que o autor inicia por apresentar como condutores da narrativa. A certa altura da trama, antes mesmo de Philemon se tornar um monge, você já é capaz de entender completamente o que é aquela figura. E mais do que ter ou não raiva dele, você é capaz de entender completamente a formação de tudo que ele representa. Mesmo que você seja incapaz de ter empatia por ele (foi o meu caso por exemplo), você é capaz de explicá-lo e mais que isso, todas as decisões da personagem parecem lógicas na sua construção.
Ainda nesse tema, outro ponto marcante da obra de Follet são as personagens femininas. Assim como Aliena, Caris também é uma protagonista forte e determinada. O autor consegue fazer muito bem o contraponto entre o papel formal de dependência e submissão da mulher medieval ao panorama prático da época, retratando não só Caris, mas diversas outras mulheres participando da vida social, comercial e quotidiana na sociedade. Sociedade onde, apesar de uma divisão clara de status quo e poder de decisão, homens e mulheres pouco possuíam uma divisão sexual do trabalho. Mulheres eram comerciantes, donas de Tavernas, inventoras, boticárias, médicas, administradoras de mosteiro, camponesas, aristocratas de grande influência. Necessário ressaltar, é claro, que isso não as trazia nenhuma liberdade individual, igualdade ou poder de decisão e que cada vez que uma mulher chegasse mais próxima de buscar essas liberdades poderia ser controlada com acusações de heresias e bruxarias.
Sob o ponto de vista histórico, além dos costumes sociais do feudalismo, a arquitetura e os costumes sociais também estão presente em “Mundo sem fim” e a descrição da epidemia de peste é simplesmente brilhante. De uma forma didática, forte e direta, Ken Follet consegue abordar todos os aspectos envolvidos na epidemia que dizimou um terço da população europeia. Os aspectos sanitários, o aspecto científico do tratamento versus o fanatismo religioso, o aspecto social após a devastação, o aspecto de religiosidade e de costumes, o aspecto político da crise de mão de obra que colocou em cheque todo o sistema servil. É simplesmente brilhante.
Mas, à parte de todos os elogios à obra, acho que em algum momento depois da metade do livro ele começa a se arrastar de maneira tediosa. Parece uma necessidade de escrever mil páginas em detrimento à necessidade de contar uma história. Claro que pela qualidade do texto você acaba não desistindo, mas é fato que os arcos narrativos começam a se repetir e repetir sem nenhum objetivo. Chega uma hora que o livro vira uma fórmula que você já adivinhou. Alguma coisa vai dar certo, aí o Padre Prior vai fazer uma aliança política, a Caris vai rejeitar o Merthin, a peste vai voltar, o Ralph vai estuprar alguém e a Gwenda vai ter uma ação dolorosa, mas inteligente. Na primeira vez é ótimo, mas na quarta vez já ficou chato. A romance de Caris e Merthin se torna chato e insosso, o sofrimento de Gwenda e a maldade de Ralph se tornam entediantes.
É tanta reviravolta desnecessária que quando o grande segredo do rei que manteve a unidade do quarteto e iniciou toda a trama é revelado, ele não tem mais importância nenhuma. Mesmo o papel de Sam como filho que se vinga de Ralph não traz emoção, porque a narrativa já está tão arrastada que perde o ponto. Não sei se esse meu entendimento tem a ver com o fato de ter lido esse muito seguido de “Pilares da Terra” e essa ser uma fórmula que também estava lá. Talvez se tivesse lido esta obra daqui um ou dois anos eu não teria esse sentimento, mas para o momento esse é o sentimento que fica ao final da leitura.
De qualquer forma, o talento de Follet para escrever romances históricos é indiscutível e ler essa obra te aproxima da idade média e desse contexto histórico muito mais que dezenas de livros didáticos.
“Nunca confio em ninguém que proclama sua moralidade do púlpito. O homem que apregoa seus elevados princípios sempre pode encontrar um pretexto para violar suas próprias regras. Prefiro fazer negócios com pecador comum, que provavelmente acha que é uma vantagem sua, a longa prazo, dizer a verdade e cumprir promessas. Não é provável que ele mude de ideia a respeito. “