spoiler visualizarP. S. Brunno 09/12/2017
Vocação para o mal, por P. S. Brunno
- A voz do mal
Pela primeira vez na série Cormoran Strike a perspectiva do assassino aparece. Através de idéias sádicas e cenas de verdadeiro terror, as aparições do autor dos crimes são um dos grandes elementos do livro. O assassino sem nome começa limpando o sangue das unhas e se perpetua em pensamentos raivosos de misoginia (ódio às mulheres) e principalmente contra Strike. No avançar da história, o assassino descrito como um “assassino serial” e “sociopata” dialoga na sua residência com uma figura vultosa que nomeia por “Coisa”; persegue prostitutas em vielas escuras, e mata com um requinte de crueldade: “a faca de trinchar mergulhou fundo duas vezes”, “ele tinha a faca pronta e a enterrou fundo entre suas costelas” e “ele cortou e cerrou”; depois corre por becos sem saída e entra tranquilamente em ônibus de dois andares após cortar partes de corpos, chegando à sua casa para guardar na geladeira os troféus de cartilagem de orelhas, nariz e dedos.
As perseguições à espreita por pubs e ruas entremeiam todo o livro e as ponderações vingativas do assassino lembram a onipotência do Voldemort. Em certa passagem da história, o assassino pensa em parar, mas desiste por considerar que foi longe demais e não havia como voltar atrás.
Assassinos mascarados de animais começam a ser recorrentes nesta série. No primeiro livro, as câmeras de vigilância registram um homem com “máscara de lobo” num corredor, e Robin, por sua vez, foi estuprada por um homem com “máscara de gorila”.
- Três suspeitos
O enredo de Vocação para o mal começa com Robin recebendo uma perna decepada pelo correio no escritório de Strike, que convoca a polícia para recolher o objeto e afirma que suspeita de três homens com a capacidade de tal atrocidade: Donald Laing, que Strike colocou em prisão perpétua por ser um torturador de mulheres e que atualmente recebia pensão por invalidez porque era gordo, doente e usava muletas para andar; Noel Brockbank, um estuprador de crianças imenso e feio; e Jeff Whittaker, usuário de crack e segundo marido muito mais novo da mãe de Strike, Leda, com quem posteriormente Strike briga violentamente atrás de um furgão por acreditar que ele foi responsável pela morte da sua mãe.
Strike e Robin seguem as rotinas dos três suspeitos e se envolvem com muitos outros personagens. Robin envereda-se por pubs suspeitos atrás de pistas e como sempre consegue que os testemunhos relatem os casos em detalhes depois de algumas cervejas. Senhoras idosas em cidades pitorescas aparecem espontaneamente para contar fofocas para eles. Strike visita lugares que Robin, nobre e vitoriana, não se dispõe a entrar, como o mundo vil do crack por vielas sujas, casas de massagem sexual e boates de stripper, onde acaba conversando com as dançarinas somente sobre as provas periciais que procura, sem desfrutar dos serviços.
Em paralelo ao crime principal, Strike e Robin trabalham na agência de investigação com dois outros casos: Pai Maluco, um rico banqueiro internacional que enfrentava uma batalha litigiosa pela guarda dos filhos e os perseguia; e Platinada, uma estudante russa de economia e lap-dancer que o namorado, apelidado de Duas Vezes, pedira para investigar em busca de provas de traição da amante.
Robin recebe mais um membro humano pelo correio: um dedo podre, e, no decorrer da história, a dupla descobre que a dona da perna decepada é a adolescente Kelsey Platt, fã do One direction (com tatuagem 1D na virilha), falsa namorada de Niall (um dos integrantes da banda), leitora da saga Crepúsculo e mentirosa; até que outros homicídios começam a pulular e o assassino procurado e semelhante à “Jack o Estripador” recebe o nome de “Estripador de Shacklewell”. Kelsey sofria de acrotomofilia (transtorno de identidade de integridade corporal ou TIIC), uma parafilia em que a satisfação sexual deriva de fantasias ou atos envolvendo um amputado, por achar que Strike amputou voluntariamente a própria perna, de acordo com os amigos dela, Jason e Tempest, integrantes de um grupo na internet sobre pessoas com esse transtorno.
No total, o assassino ataca seis mulheres: Martina Rossi (morta e com colar roubado), Sadie Roach (morta e esfaqueada as orelhas e os brincos de sorvete), Kelsey Platt (morta e dona da perna endereçada a Robin), Lila Monkton (sobrevivente e com dois dedos cortados) e Heather Smart (morta e com nariz e orelhas esfaqueados), e Robin, que é capturada pelo assassino em uma rua escura enquanto falava com Strike ao telefone e, como boa vítima de estupro que aprendeu a lição, Robin andava sempre com antiestupro e consegue safar-se apenas com o braço cortado. O assassino foge e Strike culpa-se por delegar tarefas externas para ela, que fica hospitalizada alguns dias.
Strike recebe ajuda de um amigo da polícia Shanker, enquanto outro, o inspetor-detetive Roy Carver, dedicava-se a impedir sua investigação para ele não receber as honras quando o crime fosse desvendado.
Strike compara a sua busca ao assassino com a que o presidente Obama fez ao matar Osama bin Laden, e escuta piadas sobre ele ser um Sherlock Holmes moderno. Strike também se recorda dos dois casos anteriores que teve grande repercussão midiática: a supermodelo Lula Landry e o escritor Owen Quine.
- Sofreu estupro, logo abandona a faculdade
A autora explicou que Robin Ellacott não é psicóloga forense como pretendia porque desenvolveu agorafobia por um ano depois de ter sido estuprada com 19 anos, ficando incapaz de dar continuidade aos estudos universitários, uma justificativa muito causa-efeito — ela jamais pode voltar a estudar? Robin encara como encerrada sua carreira universitária, e devido aos traumas do passado, também anda com dois alarmes antiestupro que lançam tinta na cara do estuprador, além de sonhar constantemente que está sendo atacada por trás.
- Romance
Robin e Matthew estão com o casamento marcado, porém Robin sente-se indecisa se que ou não casar com o contador que não aceita seu trabalho como detetive mal paga e com horários impraticáveis. O ciúme de Matthew por Robin trabalhar numa sala fechada com outro homem se manifesta em portas batidas com força. No escritório, Robin tira e coloca a aliança de noivado algumas vezes, o que causa furor em Strike para saber se ela irá se casar com um sujeito que ele não gosta. Robin assiste o casamento real de Kate Middleton e William pela tevê do quarto enquanto pesquisava rastros do assassino na internet com o esposo ao lado na cama, e pensa como será o próprio casamento. Robin e Matthew ficam separados durante semanas porque Robin descobre a traição de Matthew com a amiga Sarah Shadlock na época que ela foi estuprada. Robin viaja com Strike para investigação de um suspeito do caso, e na volta faz as pazes com o esposo.
Definitivamente a fronteira impessoal e profissional é rompida entre Robin e Strike e um pergunta para o outro sobre os relacionamentos. Eu esperei um beijo durante a viagem de Robin e Strike. Robin prepara chá para o chefe na tonalidade que ele gosta, permite que ele fume no seu carro, critica sua aparência mal-ajambrada e pergunta para ele se gostou dos seus sapatos de casamento. Strike apoia as mãos na cintura de Robin e a classifica como sua “parceira” e não mera secretária ou assistente. Os constantes elogios como “brilhante!” do Strike para com a Robin lembram o Harry com a Hermione.
A mãe de Robin, Linda, aparece pela primeira vez na história e entra para a turma das pessoas que desaprovam o trabalho da filha, providenciando tudo para que o casamento com Matthew aconteça. Linda conhece Strike e diz que apesar de ele não ser bonito, tem alguma coisa. O pai de Robin fica com as cenas cômicas de peidos na cozinha e brincar com o cachorro da família, enquanto que o irmão mais novo dela, Martin, faz joça de ela ser detetive.
O ex-soldado Strike finalmente tem pensamentos levemente indecentes para com Robin, uma mulher que todos os homens consideram bonita e que é constantemente perseguida nas ruas e recebe assovios por onde caminha (igual a Hermione no último livro), porém Strike sempre interrompe toda idéia mais promíscua com três pontos, bem como Robin que também o analisa como corajoso.
- Mais um final em aberto
Desta vez Strike tem uma “epifania” de idéias que o conduz para o assassino enquanto fumava até a língua doer. O assassino sai da residência para matar outra mulher e Strike entra na sua casa com uma lanterna até que Donald Laing avança sobre Strike, e eles brigam violentamente. Strike sai da briga com nariz quebrado e orelha sangrando, e o amigo policial Shanker aparece e os separa. Strike diz que descobriu que Laing era o assassino por ter encontrado comprimidos de Accutane, um remédio para acne e para artrite psoriásica, na casa de Hazel Furley (uma amiga de Kelsey), onde ele era Ray Williams, um bombeiro aposentado.
Strike despede Robin do emprego por “indisciplina grave” porque ela foi atrás de Alyssa, esposa de Noel Brockbank, para avisá-la de que por mais que Brockbank não fosse o “Estripador de Shacklewell”, ele era um pedófilo e suas filhas, Angel e Zahara, corriam perigo. Brockbank aparece no momento em que Robin briga com Alyssa e foge. Carver descobre que Strike desobedeceu a suas ordens de não perseguir nenhum dos suspeitos no lugar da polícia e, como quem infringiu a lei foi Robin, Strike a demite.
No final, Shanker leva Strike de carro à Yorkshire, cidade natal de Robin, para assistir o casamento dela. Na viagem de carro ao casamento, Strike admite para Shanker que pretende pedir para Robin voltar ao emprego, mesmo depois de ter anunciado uma vaga de secretária no jornal. Strike chega silenciosamente na igreja, porém derruba um arranjo de rosas brancas e Robin diz “sim” para se casar com Matthew olhando para Strike.
Praticamente tudo em Vocação para o mal se resolve em ligações telefônicas e os personagens são altamente conectados no ciberespaço e realizam pesquisas na pouco confiável Wikipédia e em chats de bate-papo com usuários de links impronunciáveis.
A imprensa jornalística tem grande participação no livro, registrando cada uma das mortes do assassino, sendo este um dos motivos que impedem Strike de investigar pormenorizadamente o caso, uma vez que já superou a Polícia Metropolitana nos dois crimes anteriores e é proibido de destoar caçando pistas atrás dos suspeitos.
Para somar 496 páginas, J. K. Rowling precisou recorrer à perseguição diária de três suspeitos, dois casos detetivescos (avulsos e que nada acrescentam à história), o drama conjugal de Robin com Matthew, Strike pavoneando-se por motéis e jantares com a apresentadora de rádio Elin, sutilezas de romance entre Robin e Strike, e a vários pensamentos e ações do assassino. Não sei se ocorreu um erro com a tradução, mas as palavras “maculado” e “imaculado” aparecem em quase todas as páginas. A autora conhece bem a aristocracia e a sarjeta de Londres e, sabe descrever muito visualmente cenários e agressão física, méritos narrativos conquistados, presumo, depois de sete livros em que o Harry machucava-se nas partidas de quadribol.
Não apenas a última cena congela em Robin olhando para Strike, como outras explicações ficam sem resposta, a saber: o que exatamente é a Coisa com quem o assassino conversava? O enredo faz inferir que se trata das partes das mulheres que ele assassinou, fatiou e congelou, porém em nenhum momento a Coisa é evidenciada. Strike convidará Robin para voltar a trabalhar com ele? Matthew concordará? Robin aceitará? A mídia anunciará Strike ou a polícia metropolitana como o grande detetive dos crimes de Donald Laing? O escritório de Strike sairá da ruína com novos casos?