alice 10/06/2021o pior livro da minha vidaQuando eu dou nota para um livro, me apego em geral a quatro coisas: o plot, o desenvolvimento dos personagens, a escrita e, por fim, o sentimento quando leio a última página.
“Vocação para o mal” devia ser estudado como um desastre completo em TODOS esses pontos.
O PLOT e uma sinopse
“Vocação para o mal”, terceiro livro da série, começa quando a agência do detetive Cormoran Strike recebe uma perna decepada, entregue em mãos à Robin Ellacott, a quem o membro é inclusive endereçado. O escritório deles, considerando o sucesso nos dois famosos casos anteriores (narrados nos dois primeiros livros da série), vai parar nas capas dos jornais, e isso causa uma desconfiança geral em relação à agência de Strike, e consequentemente o detetive se vê envolvido em resolver o caso para trazer de volta a boa fama de sua agência.
Inicialmente, isso parece um bom ponto de início para um thriller promissor, há um assassino à solta e a reputação do detetive está em jogo, diferente dos outros livros, em que ele lutava pela defesa de inocentes erroneamente acusados.
Já de cara, Strike apresenta três principais suspeitos: 1) seu ex-padrasto, Whittaker, que Strike acredita ter induzido sua mãe a overdose, mesmo que em seu julgamento tenha saído como inocente de sua morte, 2) Donald Laing, 3) Noel Brockbank. Os dois últimos são ex-soldados, antigos inimigos de Strike, envolvidos em abusos, sofreram de alguma doença que os declarou como inválidos. Houve um ponto na história que eu realmente não sabia diferenciá-los. As investigações a respeito dos dois se intercalavam, e mesmo que eu marcasse os trechos de cada um e tentasse organizar minhas ideias a respeito deles, eles eram basicamente a mesma pessoa. *1 (se já leu, tem uma parte com spoiler no final explicando melhor)
De certa forma, essa foi a intenção do autor ao escrever o livro. Nós temos a narração do assassino, e a medida que sua narrativa revela algumas coisas, essas características nos são mostradas ao ir mais a fundo em cada um dos três suspeitos de Strike. É instigante buscar esses pequenos detalhes neles, mas a medida que a história se desenrolava, esses dois suspeitos eram tão semelhantes que nem diferenciar eu sabia. A certo ponto, a investigação sobre eles foi igual: não sabiam seu paradeiro, buscaram alguém que morou com o suspeito, encontraram, entrevistaram, descobriram sobre abusos, depois alguém, de repente, encontrava o paradeiro atual dele.
De tantas semelhanças que o autor apresenta, nem chega a ser uma questão de um olhar minucioso para distinguir o assassino. Era uma questão de confusão cerebral com nomes e com quem fez o quê. Foi uma das partes mais exaustivas da leitura, o que, somado com as quase 500 páginas, nos leva ao próximo ponto.
A ESCRITA
É perceptível que J.K Rowling, além de adotar um pseudônimo para escrever essa série, mudou muito sua escrita ao se localizar no ambiente dessa narrativa. Dentre os livros da série, o vocabulário que ela adere a esse livro é visivelmente mais pesado e adulto que o dos livros anteriores, e culpa disso é o fato de haver capítulos em que o assassino narra. E é importante destacar que ele narra enquanto assassina mulheres. São os capítulos mais curtos do livro, porém os mais difíceis de atravessar, ainda mais quando você precisa captar os detalhes que o assassino solta para descobrir quem ele é.
Ao lado disso, temos uma narrativa MUITO, mas MUITO lenta. O que não faz sentido, considerando que, desde o início do livro, nos foi dito que é a reputação de Strike e Robin que está em risco, mas eles não parecem nada aflitos para se livrar da enrascada. Isso sem falar que tem um assassino à solta e mulheres SENDO MORTAS, outra coisa que Strike não parece dar à mínima. Há piadas sobre isso no livro. Sinceramente. Piadas.
O livro se estende quase 200 páginas a mais que o necessário. Temos que acompanhar os dois vigiando e seguindo pessoas a pedido de clientes, ficando parados na frente de prédios, indo em encontros que claramente não servem pra história, comprando sapatos, indo para a casa dos pais e até provando vestido.
Até a forma como Strike pega o assassino mostra isso. Ele claramente poderia ter feito aquilo 100 páginas atrás, considerando que eles sabiam a semanas onde o assassino morava e o plano ridículo dele não envolvia realmente saber QUEM o assassino era. Se ele quisesse, fazia aquilo exatamente do jeito que fez só para descobrir se seu suspeito era ou não culpado. *2
DESENVOLVIMENTO DOS PERSONAGENS
Esse é o terceiro livro de uma série, então os personagens precisam tanto ser coerentes com suas atitudes anteriores, quanto demonstrarem um crescimento na sua personalidade. Ainda mais nos dois personagens principais, o Strike e a Robin.
Desde o primeiro livro, eu gostava do STRIKE. Ele é um ex-soldado, não tem uma das pernas, é grandalhão e desengonçado, acima do peso e filho bastardo de um famoso do rock e de uma groupie. Achei que era uma boa mudança nos personagens da autora.
Acima de tudo, nos apresentam um homem com princípios e um forte senso de justiça, uma vez que ele faz de tudo, nos dois livros anteriores, para a provar a inocência de uma pessoa que ele acreditava não ser culpado. Enquanto nesse livro, tudo isso se perde.
As mulheres mortas são completamente desprezadas por Strike. O caso se torna mais uma questão pessoal em busca de uma vontade crua de vingança que qualquer outra coisa. No fim, o assassinato das mulheres vira só como o meio que ele precisa para finalmente colocar um dos seus suspeitos atrás das grades.
Quanto a ROBIN, ela foi a personagem mais destruída nesse livro, eu me remoí só lendo a desconstrução sem pé nem cabeça que o autor trouxe pra ela. Partindo de secretária para parceira de Strike na agência, o crescimento da Robin nos livros anteriores foi grande. No final do segundo livro, ela participava ativamente nas investigações e na captura do criminoso. Então chega esse livro e ela se torna o enfeite de parede precioso do Strike.
Antes de tudo, percebemos o desenvolvimento do interesse entre os dois. E o livro INTEIRO não nos deixa esquecer isso. Essa questão às vezes se tornava mais importante até que a própria investigação. Repetidas vezes Strike pensava em dar um murro da cara de Matthew ou fantasiava com o descarado interesse nela, ou qualquer outra coisa besta.
Mesmo com esse desvio, não foi isso a pior coisa. Com a perna endereçada a Robin, o detetive assumiu que o assassino estava atrás dela, então começou a impedir Robin de ir para os lugares, de trabalhar, queria mandá-la para a casa dos pais, não aceitava seus planos. Ele ignorava completamente o fato dela ter treinado defesa pessoal e estar no seu nível na investigação, colocando-a em funções inúteis só para ela não reclamar. Durante o livro inteiro, Robin tentava provar seu valor e independência, mas era completamente ignorada. Ela carregou o caso, mas não tinha crédito pelas descobertas, e quando queria ajudar, era só passada para trás pelo Strike, e tudo isso porque ele não queria que sua queridinha se machucasse.
Além dessa atitude contradizer o Strike dos livros anteriores, todo o crescimento da Robin foi corrompido. Chega a um ponto que sua motivação nem é desvendar o caso, mas cair nas graças do Strike.
Eu até poderia aceitar esse desenvolvimento se, ao final do livro, ele fosse resolvido e Robin conquistasse novamente seu respeito e independência. Mas nem estar no confronto final ela está. Enquanto Strike e um amigo seu (completamente aleatório por sinal, parecia estar ali só para substituir a Robin), capturam o assassino, a Robin está organizando seu casamento. Ela não teve função no desfecho do livro, o que destoa completamente do seu papel nas histórias anteriores.
Foi doloroso ver toda a personalidade construída para a Robin se desfazer, saindo de uma das personagens principais para essa garota buscando reconhecimento e não fazendo nada importante aos olhos de Strike.
Saindo agora dos personagens principais, tem mais um aspecto que me incomodou no livro de uma forma absurda. É introduzida na história (não vou dizer como para evitar spoiler), uma comunidade virtual que sofre de um TRANSTORNO MENTAL chamado TIIC.
Quando me deparei com o termo no livro, fui pesquisar a respeito e encontrei essa reportagem (https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/05/08/conheca-o-disturbio-raro-que-leva-as-pessoas-a-amputar-os-proprios-membros), caso queira saber mais.
Basicamente, é um distúrbio raro em que a pessoa sente a necessidade de amputar um membro saudável do corpo, ou até de ter paraplegia. TIIC significa Transtorno de Identidade e Integridade Corporal, e além de não possuir tratamento conhecido, ainda não há muitos estudos desenvolvidos no assunto, ou uma explicação concreta a respeito da origem desse distúrbio.
É importante destacar que há pessoas que vão a cirurgiões afim de amputar um membro saudável. Quando o médico não se recusa, ou não é impedido, a pessoa alega se sentir melhor, ou completo. Existem pessoas que fingem ser amputados ou paraplégicos. Há aqueles também que se envolvem em acidentes ou tentam tirar o membro por conta própria, queimando ou cortando, como nos é mostrado no livro.
De qualquer forma, esse assunto surge na história, sem contar que é um aspecto importante da narrativa. Em certo ponto, Strike e Robin vão se encontrar com dois membros dessa comunidade sofredora de TIIC, Tempest e Jason, e claramente você percebe uma falta de tato do autor ao tratar o assunto.
Primeiro que é um distúrbio mental pouco estudado e sem tratamento ou definição. Seria de esperar que houvesse algum aprofundamento com sensibilidade afim do leitor entender do que se trata, mas nem isso acontece. E pela forma que é narrado, a sensação que se tem é de que aquilo não é uma doença, mas sim um drama sem motivo de pessoas que querem chamar atenção. Um trecho do encontro deles:
“- Conhece muitos deficientes físicos? – perguntava Strike a Tempest.
- Conheço alguns. Evidentemente temos muito em...
- Vocês têm a merda toda em comum. Essa merda toda. (...)
Strike se levantou, assomando sobre Tempest, que de súbito parecia nervosa, enquanto Jason se encolhia na cadeira, dando a impressão que queria desaparecer dentro do capuz. (...)
- Só para que vocês saibam (...), eu estava em um carro que explodiu em volta de mim – Jason cobrira com as mãos a cara vermelha, os olhos cheios de lágrimas. (...) – O motorista foi cortado em dois... isso ia te garantir alguma atenção, hein? – disse ele com selvageria para Tempest. – Só que ele morreu, então não deu em grande coisa. (...)
- Procure ajuda – disse Strike em voz alta, apontando para Jason enquanto deixava que Robin o puxasse, os comensais e garçons encarando. – Consiga a merda de uma ajuda. Para a sua cabeça. (...)
Eles continuaram andando (...). Uma garota de aparência boêmia com dreadlocks flutuava com um vestido longo e estampado, mas uma bolsa de quinhentas libras revelava que suas credenciais de hippie eram falsas como a incapacidade física de Tempest.
- Pelo menos você não deu um soco nela – comentou Robin. – Naquela cadeira de rodas. Na frente de todos os amantes da arte.
Strike riu. Robin balançou a cabeça.
- Eu sabia que você ia perder a paciência – suspirou ela, mas estava sorrindo.”
Há dois aspectos para destacar de cara. Primeiro que Strike perdeu a perna num acidente, e o fato dele conhecer pessoas que querem tirar a sua própria, saudável, deve mesmo ser uma situação desconfortável, e ele tem o direito de se sentir incomodado, até certo ponto. Mas é o fato da Robin, logo no final do trecho, não ter uma visão conciliadora, ou até de repreensão ao Strike, mas sim parecer achar certo o seu comportamento que me incomodou. Desde a primeira página, ela se mostra preocupada com o próximo, ela é respeitosa e cuida dos outros, independente de quem seja. O fato dela não reagir à postura do Strike é uma completa contradição de personalidade. A reação dela não foi característica da personagem, como a do Strike, mas sim a visão do autor escapando, e a demonstração descarada de falta de sensibilidade numa questão que exige tanta seriedade quanto qualquer distúrbio mental.
A meia estrela que eu dei para o livro, além de ser a menor pontuação possível, foi por me apresentar a TIIC, mesmo que não da maneira correta.
Mesmo ainda tendo mais coisa para falar, vou parar por aqui, porque isso já tá grande demais.
CONCLUSÃO
Quando eu fechei o livro, o SENTIMENTO maior foi nojo. O livro foi uma completa perda de tempo, um plot sem pé nem cabeça, um desenvolvimento dos personagens absurdo e se não fosse pela minha vontade de terminar o livro para eu poder falar com propriedade do que eu senti, nunca atravessaria ele inteiro, porque foi só na base do ódio.
POR FIM, o objetivo da resenha é entender os pontos do livro, e buscar uma explicação para as emoções que sentimos durante a leitura. O propósito não é desmerecer o livro, mas sim fazer críticas construtivas e argumentar a respeito delas.
Caso tenha se incomodado com algum dos pontos que eu levantei, me procura :)
SPOILERS
*1 Queria deixar claro aqui que Strike aparece com esses suspeitos da página 24 do livro. É um ponto de partida extremamente rápido, considerando as quase 500 páginas do livro. Agora, que um desses três suspeitos REALMENTE fosse o assassino é obtuso demais. Chega a ser ingênuo. Quando você descobre qual dos dois (porque o padrasto já é eliminado na metade do livro, quando você percebe que o comportamento dele não condiz com a narração do assassino), não é nem uma questão de surpresa. É mais um sorteio. O autor escreveu os nomes no papelzinho e culpou o que apareceu. Se fosse o outro, daria no mesmo, tanto pro Strike, quanto pro contexto da história, quanto pro leitor. De tão iguais que os dois suspeitos eram, se eles fossem a mesma pessoa eu não ficaria surpresa.
*2 Quero dizer, porque o Strike, quando visse o homem saindo, só não fingisse o vazamento de gás, entrava no apartamento e dava uma olhada?
site:
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/05/08/conheca-o-disturbio-raro-que-leva-as-pessoas-a-amputar-os-proprios-membros