Che 07/07/2017
NERDICE BELIGERANTE IRREGULAR
Entusiasmado pela qualidade surpreendente do roteiro de "Fury: My War is Gone", publicada (infelizmente só em terra gringa) pelo selo Marvel Max, decidi escarafunchar mais na faceta beligerante do irlandês Garth Ennis (da sensacional "Preacher"). Foi assim que cheguei a essa "Battlefields", série sobre guerra, publicada pela obscura editora Dynamite, a mesma para quem Ennis fez a elogiada "The Boys" (que ainda não li).
O roteiro desta vez é sem personagens 'medalhões' da cultura pop, até porque é uma editora nova (a Dynamite foi fundada em 2005). É dividida em 24 edições, com oito arcos de três edições. Cada um dos arcos funciona de modo completamente independente, embora o autor alterne entre figuras comuns nos batalhões russos e britânicos, mas há dois deles ("Querido Billy" e "Happy Valley") totalmente avulsos do resto. De modo que se você quiser ler os arcos individualmente, não tem problema nenhum.
Ennis é claramente um nerd das guerras e conflitos geopolíticos em geral (o que não é uma surpresa pra quem leu as aventuras de Nick Fury no Max), em especial da Segunda Guerra Mundial, da qual ele conhece batalhas e aspectos bem pouco divulgados pela cultura de massa, dentro ou fora dos quadrinhos. E foi um acerto dele decidir sair das batalhas mais famosas e jogar luzes nessas menos conhecidas. Como esperado, ele nunca se priva de humor negro (embora menos que de costume) e, claro, bastante violência gráfica.
As duas primeiras histórias são perfeitas, sem tirar nem pôr.
Ennis já começa arrebentando a boca do balão com o arco sobre a piloto Anna Kharkova, um esquadrão de bombardeio soviético composto exclusivamente por mulheres que foi apelidado pelos próprios alemães de 'Bruxas da Noite'. Eu já conhecia esse esquadrão e seu funcionamento, tenho imensa admiração por essas heroínas que foram lutar contra os fascistas junto com os homens e o modo como Ennis retratou é ótimo, com um final dramaticamente excelente, vários momentos memoráveis e tendo a esperteza (que infelizmente ele nunca mais teria no resto da série) de narrar também o lado dos alemães, sem se omitir sobre a violência devastadora deles em solo russo, mas também tendo pelo menos um personagem complexo pra balancear a narrativa e tirar dela o maniqueísmo. E tudo isso sem perder de vista os desejos e inseguranças da protagonista, retratada em tintas bem humanas.
O segundo arco, "Querido Billy", traz uma abordagem intimista, inesperada pra quem vinha do arco sobre as bruxas da noite, a respeito de uma enfermeira inglesa num hospital de Calcutá para soldados feridos, tentando a duras penas conviver com o trauma do estupro coletivo pelos soldados japoneses, segredo que ela guarda a sete chaves. O roteiro é em boa parte narrado em forma de carta confessional, endereçada para o único homem com quem ela conseguiu razoavelmente se abrir (o piloto do título), na qual seu ódio pelos nipônicos vai se revelando cada vez mais homicida. Tem um final arrebatador, chocante até, que o leitor vai amargamente prevendo onde vai dar nas últimas dez ou quinze páginas, sem passar a mão na cabecinha dos personagens e sem fugir das consequências irreversíveis da guerra, mesmo para figuras que não estiveram com armas em punho no front.
Pena que, depois desses dois arcos iniciais brilhantes, Ennis tenha ligado o 'piloto automático' e feito histórias irregulares, sem o roteiro mais trabalhado e surpreendente que caracterizou esse começo genial, muitas vezes sendo só palavrório sem ação para o autor exibir descritivamente sua nerdice sobre as batalhas menos conhecidas da guerra, defeito que também atrapalhou "Fury: Peacemaker".
O terceiro arco acompanha um monte de personagens bobinhos e sem sal de diferentes regiões da Grã-Bretanha, ainda que os momentos de ação e suspense sejam bons. Eles ainda voltam em mais dois arcos, um novamente contra os alemães e outro ("Além dos Verdes Campos", o roteiro mais raso da série e o que tem o desenho mais fraco) já na Guerra da Coreia, no qual eu torci descaradamente para chineses trucidarem aqueles personagens boçais que, além de representarem o avanço imperialista, eram chatos pra cacete.
O arco do piloto australiano também é só ok e fica meio deslocado dos outros, embora não chegue a soar invasivo na continuidade da leitura. Dá uma melhorada com o retorno de Anna Kharkova em "Pátria Mãe", porém cai num anticomunismo caricato, às vezes até infantil, no arco final, quando ela vai parar num gulag siberiano e Ennis quer nos convencer do quanto seria melhor ela ter se refugiado nos EUA! Essa cara-de-pau é particularmente notória porque, afinal, ela acabou se revelando mesmo irresponsável (o que destoa da personagem que era retratada nos arcos anteriores), de modo que a decisão dos altos oficiais de encarcerá-la se mostrou, afinal de contas, até justificável. Ainda assim, a história acaba sendo bem passável graças ao talento narrativo de Ennis e a arte satisfatória, apesar das incoerências na história.
A arte visual é feita por quatro desenhistas diferentes, a depender do batalhão que os roteiros mostram no vai e vem narrativo dos arcos escritos entre 2008 e 2013. No geral, o nível é bom e me satisfez, principalmente em Russell Braun (responsável por dar imagem às narrativas soviéticas). Não é nada de genial, mas é correto nas cenas de ação e discreto nos momentos em que pede mais intimismo, como no arco da enfermeira, desenhada pelo dinamarquês Peter Snejbjerg como uma sósia de Ingrid Bergman. O espanhol Carlos Ezquerra, que acompanha os britânicos, começa bem em "Tankies" mas vai caindo o nível, a ponto de que achei "Além dos Verdes Campos" o pior desenho da série, feito nas coxas e mal detalhado.
Evidentemente, é uma série pouco conhecida. Se for publicado integralmente no Brasil, vai demorar pra acontecer. A boa notícia é que já foi parcialmente publicada aqui pela editora Mythos, se bem me recordo no ano passado, contendo apenas justamente os dois primeiros e melhores arcos de "Battlefields", que são os que realmente importam. Como os arcos posteriores ficam muito aquém, recomendo pra quem puder ir atrás dessa edição da Mythos indepdente de prosseguir a leitura dos outros, principalmente quem se interessar pela história da guerra, incluindo aí professores que visem material para alunos, já que o conteúdo dessas duas narrativas iniciais (apesar da violência gráfica e conceitual) é bastante instrutivo sem soar didático.
NOTAS
Bruxas da Noite - ★ ★ ★ ★ ★
Querido Billy - ★ ★ ★ ★ ★
Tanques - ★ ★ ★ ½
Vale Feliz - ★ ★ ½
Sua Majestade e os Vaga-lumes - ★ ★ ★
Pátria Mãe - ★ ★ ★ ½
Além dos Verdes Campos - ★ ★
Queda e Ascensão de Anna Kharkova - ★ ★ ★