Dhiego Morais 22/11/2016O Destino é InexorávelMuitos leitores de Cornwell começaram ou sugerem que se comece por sua obra mais aclamada: a trilogia As Crônicas de Artur. Eu conheci o autor pelas Crônicas Saxônicas, com O Último Reino. E, depois de ler O Rei do Inverno, posso dizer que valeu a pena a espera. Existe uma beleza e delicadeza na escrita desse livro que não existe nos livros de Uhtred. Essa ausência é perfeitamente explicável: nas Crônicas Saxônicas não existe Derfel Cadarn.
Eu já conhecia a história de Artur, ou Arthur, ou Artorius. E tenha certeza que a maioria dos leitores também conhece, seja pelos filmes, As Brumas de Avalon, Rei Arthur, Lancelot, o primeiro cavaleiro; pelas animações A Espada era Lei e A Espada Mágica - A Lenda de Camelot ou pela série britânica exibida pela BBC One, Merlin. No entanto, a história que Bernard Cornwell entrega ao público e a forma como ele faz isso torna tudo muito mais fantástico do que aparenta.
Cornwell conta a história de Artur pelas perspectivas e memórias de Derfel Cadarn, filho de uma escrava saxã. Agora como um sacerdote em Dinnewrac (que Deus abençoe Sansum), Derfel escreve a história de sua vida, suas lembranças, seu passado, seus sentimentos, saudades e impressões sobre o tempo em que era menino, até o momento que compartilhou ao lado de seu amigo, Artur. Enquanto escreve, narra tudo a Igraine, rainha de Powys e sua patrona. É essa ferramenta, a de narrar uma história pelos olhos de outrem, ainda que fictício, que torna a trama de Bernard Cornwell fantástica e agradável.
Derfel é um dos vários pupilos de Merlin, o poderoso druida e Senhor de Avalon. Quando pequeno foi jogado ao poço por um druida do exército inimigo, enquanto sua mãe saxã era estuprada. Foi graças à ajuda de Merlin que Derfel sobreviveu.
“— Você acha que todos deveríamos correr loucamente pelos caminhos do destino?
— Acho, senhor, que quando o destino nos agarra, fazemos bem em pôr a razão à parte”.
A trama gira em torno da busca de Artur em manter a Britânia unida. Entre os séculos V e VI a Grã-Bretanha atravessava um momento conturbado, com a saída dos romanos, quando os diversos feudos guerreavam entre si para garantir a sua própria soberania. Reis cobiçavam as terras vizinhas e o título de Grande Rei, enquanto druidas aspiravam restituir a glória dos deuses ancestrais, que lutavam por espaço com o avanço do cristianismo.
Artur é um personagem praticamente mitológico. Mesmo com as descobertas arqueológicas recentes, há pouco para se por à prova, e esse pouco gera dúvidas para alguns especialistas. Cornwell trabalhou extremamente bem com o que possuía, e, certamente, foi capaz de criar uma das histórias mais fiéis narradas até hoje. O Artur de Bernard Cornwell é poderoso, humilde e apaixonado; venerado por seus guerreiros e respeitado por seus inimigos; um estrategista de primeira e lutador exímio; bom ouvinte, inflexível quando necessário. Artur era um homem que ansiava ser amado. Há uma aura quase mágica no que se refere a Artur.
Merlin e Nimue são duas personagens extremamente interessantes e complexas. Merlin é sagaz, meticuloso, muito influente e está preso somente aos seus interesses, que se reflete em restaurar a glória da Britânia. Nimue é sua amante, uma sacerdotisa intimidadora que demonstra um crescimento e uma história própria fenomenal.
Por outro lado temos Morgana, Lancelot e Guinevere. Menos trabalhados que as demais personagens, porém igualmente parte do elenco conhecido pelo público comum. Apenas Guinevere apresenta um maior desenvolvimento entre as três figuras citadas, e o caminho escolhido por Cornwell para todas elas aguçam ainda mais a vontade em ler o próximo livro.
Em contrapartida, Derfel consegue roubar a cena em diversos momentos. Suas cenas de ação prendem o leitor e os seus momentos de reflexão, seus diálogos com Igraine e consigo mesmo são sempre cheios de emoção. Há certa reverência ao próprio passado e ao amigo, Artur.
Com a instabilidade política inerente ao momento histórico britânico, e com uma série de eventos que desencadeia o seu apogeu, o leitor pode esperar por batalhas incríveis, por paredes de escudos de tirar o fôlego e subtramas estonteantes. É claro, há partes em que o ritmo se quebra e se movimenta mais lentamente, mas nada que torne maçante ou desestimulante. Cornwell equilibra bem esses trechos com diálogos que enchem os olhos de qualquer um.
“Reinos precisam de reis, e sem eles não há nada além de terra vazia convidando as lanças de um conquistador”.
É um tanto quanto complicado falar de O Rei do Inverno, pois uma informação a mais pode ser um spoiler ou pode tirar o encanto lançado pelo autor.
O Destino é uma personagem importante na obra. São os seus toques delicados sobre a teia que nos carregam pelas memórias de Derfel, onde acompanhamos um passado difícil e uma jornada cheia de aventuras ao lado de companheiros leias e de traidores imprevisíveis.
“Mas o destino, como Merlin sempre nos ensinava, é inexorável. A vida é uma brincadeira dos Deuses, costumava dizer Merlin, e não existe justiça. Você precisa aprender a rir, disse-me ele uma vez, ou então vai simplesmente chorar até morrer”.
O final compensa toda a leitura, não somente pelas paredes de escudo, mas, principalmente, pelas cenas finais, protagonizadas por Derfel e Nimue. Que final! Que final!
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