Núbia Esther 09/02/2020Svetlana foi uma criança que cresceu tendo seu mundo girando em torno da consequência da Segunda Guerra Mundial. Foi natural para ela querer falar sobre esse período quando começou a escrever livros, mas o queria fazer sob um diferente ponto de vista, dar espaço a voz que sempre permaneceu calada, apesar de ter participado ativamente da guerra, a voz feminina. E isso, Svetlana conseguiu fazer com louvor em A guerra não tem rosto de mulher.
“No exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres. Elas dominavam todas as especialidades militares, inclusive as mais ‘masculinas’. Surgiu até um problema linguístico: as palavras ‘tanquista’, ‘soldado de infantaria’, ‘atirador de fuzil’, até aquela época, não tinham gênero feminino, porque mulheres nunca tinham feito esse trabalho. O feminino dessas palavras nasceu lá, na Guerra…. ” (De uma conversa com um historiador, página 8)
Para fazer isso, cerca de quarenta anos depois de findada a guerra, Svetlana se entregou à hercúlea tarefa de recuperar relatos, memórias que muitas se empenharam muito para esquecer. Quando começou a colher os depoimentos, foi com reticência que muitas receberam Svetlana, mas não demorou para a partir delas mesmas, criar-se uma rede de indicações e convites que mergulharam Svetlana em milhares de depoimentos. O desafio já não era conseguir informações do papel feminino na guerra, mas escolher o que entraria no livro.
Cada capítulo se inicia com considerações de Svetlana, antes de mergulharmos nas lembranças que muitas tiveram de suprimir. São histórias de garotas que com 15, 16 anos foram parar no front de batalha. É o machismo estrutural que negou às mulheres o direito de ir à guerra. O mesmo machismo que taxou de pouco femininas as que ousaram ir para o front, que fez dessas mesmas mulheres, opções pouco satisfatórias para ter um relacionamento: “se você batalhou, não servia para casar”. O mesmo machismo que durante muito tempo extirpou-lhes o direito de fazerem parte da história. Ainda que a coragem de muitas delas tenha ajudado a salvar a vida de muitos soldados homens, se transformando em alvos ambulantes enquanto com suas tarefas resgatavam homens feridos ou produziam centenas de cortinas de fumaça para protege-los do fogo inimigo. São histórias de como a guerra ceifou a juventude de muitas mulheres, de como ela provocou mudanças fisiológicas em seus corpos. De como tiveram de continuamente mostrar o seu valor, tendo o descrédito como companheiro durante toda a guerra.
Tenho um leve pendor para livros que se passam no período das guerras e entreguerras, mas este foi o primeiro que me forneceu uma visão pouco abordada nos livros de não-ficção que retratam o período. Não só por tratar do papel feminino na guerra, mas por ser contado por elas, as mulheres soldados. Por ser um repositório de suas lembranças (ou do que se permitiram lembrar), dos seus anseios, do que tiveram de enfrentar para serem aceitas, primeiro no front de batalha, findada a guerra, de volta à sociedade, que pode ser tão massacrante quanto um morteiro. Um relato pungente, doloroso e necessário.
Quando se fala em Segunda Guerra Mundial logo se lembra da Alemanha e dos Estados Unidos, como se só este tivesse sido responsável por derrotar o exército de Hitler. Houve milhares de perdas do lado soviético, a guerra foi lutada diretamente em suas trincheiras (oficiais ou não). É preciso deixar essa participação registrada na história. É preciso deixar registrado o fato de lugares historicamente considerados masculinos, foram também femininos. A guerra pode até não ter rosto de mulher, mas seus punhos, mira e vontade de se provar, mudaram os rumos dela.
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