Krishnamurti 17/07/2016
Vozes engasgadas nas gargantas…
Acaba de ser publicado pela Editora Malê, a obra “Histórias de leves enganos e parecenças” de Conceição Evaristo. Trata-se da reunião de doze contos e uma novela da experiente autora que é também Mestra em Letras pela PUC-Rio, e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Para além das diversas obras publicadas, Conceição detém considerável fortuna crítica que dispensa maiores comentários.
O livro trás à guisa de prefácio, um primoroso e oportuno estudo sobre a obra da autora, assinado por Assunção de Maria Sousa e Silva no qual são elencados e esclarecidos determinados aspectos da ficção de Conceição, sobretudo quanto à evocação da história dos afro-brasileiros, centrada no sujeito subalterno da sociedade, “consciente de sua condição e realidade, sempre em busca de resistir às pressões do status quo quo que engendram as relações de poder demarcadas pela herança escravocrata”.
Os contos de “Histórias de leves enganos e parecenças” são primorosos em inventiva e conteúdo simbólico. Transitam em um estilo que vai do fantástico ao sagrado – como ocorre nos contos “Nossa Senhora das luminescências” e em “A moça do vestido amarelo” -, e trazem em seu conjunto um conhecimento carregado de saberes e fazeres cognitivos da tradição e oralidade da cultura de matriz africana, que são valiosos mecanismos de aprendizagem. O nível do simbólico de que a autora se vale tem o poder de impulsionar com vigor o imaginário fantástico da literatura como ferramenta de aprendizado no viés do pensamento de Paulo Freire: “aprender é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito”. E como estamos carentes de aprender para mudar. Muito. Sobretudo na questão do racismo à brasileira, essa sujeira sempre lançada para debaixo do tapete.
O nosso 'racismo cordial' hoje, como aponta o economista Marcelo Paixão, é de caráter eminentemente estrutural, baseia-se em padrões de hierarquia racial na qual fortes diferenças separam as condições socioeconômicas de brancos, negros e mestiços. Fatores objetivos e subjetivos se irmanam não apenas para prorrogar as diferenças nas condições de vida entre portadores de cor de pele distintas, mas também para tornar tais diversidades naturais. Fatores objetivos e imediatos: A sempre intocada distribuição de renda, os eternos impasses do nosso sistema educacional, os aparatos policiais em completo despreparo, e tendo nos jovens negros alvos preferenciais – é de se ler com muita atenção o conto “Os guris de Dolores Feliciana” -, a nossa população carcerária, a terceira maior do mundo, e composta majoritariamente de pretos e pardos que nunca surrupiaram bilhões e bilhões dos cofres públicos; os empregos subalternos e com salário de fome etc. e etc.
Falamos em fatores subjetivos? Em nosso país como mais uma vez aponta o pesquisador Marcelo Paixão, “o olhar é educado para informar à consciência coletiva de que a cor da pele confere aos diferentes tipos de brasileiros, locais igualmente assimétricos em nossa pirâmide social”. É a naturalização das diferenças. A propósito, ler o conto “Mansões e puxadinhos”, um candente exemplo do 'realismo mágico', violento e injusto de nossa sociedade, para ficarmos num expressão literária.
Ainda hoje, Conceição Evaristo ouve um leve estalar de dedos que a convida a escrever sobre essas e outras questões, um estalar de dedos que provém de tempos imemoriais. É então que as incontidas águas da memória jorram os dias de ontem sobre os dias de hoje. E eis que na pequena casa de paredes amarelas, em Maricá, a 65 quilômetros do Rio de Janeiro, ela se desloca ao segundo andar da residência, e no percurso até a biblioteca, vai rememorando histórias ancestrais que ouviu de sua mãe, dona Joana; recorda também as vozes de Carolina Maria de Jesus, de Maria Firmina dos Reis, de Lino Guedes, de Oswaldo de Camargo, de Frantz Fanon e de tantos e tantos outros…
É uma guerreira de 70 anos Carolina Evaristo, que empenhou sua literatura nesta árdua luta para que não seja esquecido o passado de sofrimento físico e moral, individual e coletivo. Empenha sua literatura hoje (porque infelizmente ainda se faz muito necessário), nas demandas do presente pois continuam a ecoar as “vozes mudas e caladas, engasgadas nas gargantas” de milhões e milhões de brasileiros.