spoiler visualizarSapere Aude 03/03/2022
Uma distopia poética: o utilitarismo e a arte
Afonso Cruz conduz uma distopia sobre o utilitarismo e o papel da arte em um mundo onde tudo precisa ser mensurado. Quanto vale um poema? Tudo é medido pelo custo, pelo lucro gerado, em relações supostamente objetivas de valor.
?Dizem que é bom transacionarmos afetos, liga as pessoas e gera uma espécie de lucro que, não sendo um lucro de qualidade, já que não é material e não é redutível a números ou dedutível nos impostos ou gerador de renda, há quem acredite - é uma questão de fé -, que pode trazer dividendos?, comenta a narradora e protagonista ao receber um beijo do pai.
Viver nesse mundo em que tudo precisa ter utilidade, chama atenção e nos prende ao enredo. Surge a naturalização de um falar estatístico-financeiro. Cada grama de comida, mililitro de saliva em um beijo, tempo despendido é contado e narrado. ?O ar como se costumava dizer cheirava a dólares?.
Há novos elogios e expressões típicas ao espírito do tempo, como considerar alguém ?lucrativo? ou desejar ?prosperidade e crescimento? ao se despedir. Nesse universo em que tudo é contabilizado e negociável (até o corrimão da escada é patrocinado por uma marca), a protagonista faz um pedido aos pais. Como quem pede um cachorro ou um gato de estimação, ela anuncia que gostaria de ter um poeta. ?Podemos comprar um??.
Ao conviver com o seu poeta, sem objetivos explícitos, vê uma relação sem resultados mensuráveis. Como lidar com poetas, com a poesia? Vê-se um tensionamento da ideia de utilidade, de um mundo movido pela noção de resultado como benefício material e imediato com aquilo que não tem porquê nem tem fim.
Uma distopia atual em tempos de ode à eficiência/tecnologia e do culto desmesurado ao dinheiro. A obra é a Metáfora de um poema, nos lembra que ?é na inutilidade que está o altruísmo e aquilo que o ser humano considera naturalmente mais nobre?.