F. B. Vlaxio 30/12/2020
Homens Elegantes [ou uma viagem no passado para quem gosta de boas leituras]
Resenha no Blog Silêncio Contagiante:
Quanto mais resenhas escrevo, mais incompetente me sinto para continuar a escrevê-las. Tem livros — como o que vamos discutir hoje — que dispensam minha análise. Quer dizer, livros de que gosto tanto que minha tentativa de resenhá-los deságua num barril vazando tietagem por todos meus argumentos. Logo, dou adeus à imparcialidade do leitor-crítico e me embaraço num crochê de bajulações de uma grupie que pode não agradar os frequentadores mais exigentes deste blog literário.
Para começo de conversa, Homens Elegantes foi a melhor leitura que fiz em 2020.
Para meio de conversa, Homens Elegantes me surpreendeu de maneiras que vão desde minha sede por livros bem escritos até nossa pequena e compartilhada lascívia desejosa de cenas com fricção carnal entre cavalheiros do mesmo sexo biológico, cof cof.
Para fim de conversa, Homens Elegantes é uma história pretensiosa, com ares de despretensiosa, que acaba por justificar todas suas pretensões a ser um livro marcante, “relível” ocasionalmente e com certo potencial para candidatar-se a clássico da literatura lusófona.
Trata-se de um trabalho narrativo de fino trato, com um texto muito bem lapidado, um pano de fundo academicamente pesquisado e uma história capaz de agradar uma decente variedade de leitores — dos amantes das novelas de Giovanni Boccaccio aos fiéis consumidores das investigações policiais de Agatha Christie —, e quiçá, por que não?, cair nas graças daqueles que, assim como este que vos escreve, depositam em Wilde e Shakespeare o pedestal da boa literatura.
Homens Elegantes desfila na passarela da narrativa histórica, sem intenção clara de ser um romance histórico, porém, com pitadas mais do que satisfatórias para fãs de romances de época, fato este que torna o livro tentador para um público mais abrangente. A trama em si está carregada de referências das mais rebuscadas a todos os tipos de assuntos. Joga aqui e ali passagens e poemas de romancistas famosos; evoca obras de arte conhecidas mundialmente; compartilha detalhes históricos do período oitocentista; e deposita a semente da curiosidade nos leitores mais atraídos pela exatidão dos lugares e personagens apresentados na linha temporal do livro.
À guisa de sinopse, posso dizer que o enredo orbita em torno da missão de Érico Borges, um soldado brasileiro, na década de 1760, que atravessa metade do mundo num navio para investigar o contrabando de livros eróticos. Ao que tudo indica, a origem do contrabando está em Londres, que é a cidade onde se desenrola a trama. Conforme Érico se aprofunda na investigação, acaba descobrindo indícios de uma rede complexa e organizada de espionagem cujo objetivo vai muito além do que simplesmente contrabandear livros proibidos pela coroa portuguesa.
E é isto. Uma premissa empolgante que, sem acrescentar mais nada, já daria uma ótima leitura. Mas este livro, minhas caras e meus caros, extrapola sua premissa empolgante. Tropeça na excitação e queda sobre o extraordinário. No conjunto da obra — que me perdoem os pudicos de plantão —, este é um puta livro incrível. E ainda por cima NACIONAL!! Estou quase gritando por mais…
Aliás, tem um bocado de coisa que eu tenho para escrever, mas pelo bem daqueles que torcem o nariz quando se deparam com um textão, vou tentar me restringir às partes mais pertinentes. A primeira delas é o título, Homens Elegantes. Ora, isto é autoexplicativo, claro, mas vale comentar. A primeira coisa que Érico percebe quando desembarca na terra da Rainha (àquela época, d’um rei, convém lembrar) é que ele está vestido como um caipira. Tudo bem, isso é exagero, já que ele tem lá certo bom gosto para vestuário. Mas, comparado aos cavalheiros londrinos, ele não passa de um rapaz do interior que tirou a sorte grande em algum antiquário.
Obviamente, quando se trata de moda, roupas femininas são muito mais interessantes. Mas, para o escopo de nossa história, o autor se debruçou quase cientificamente sobre a moda masculina, tanto em tecidos, quanto em calçados, perucas e até maquiagem, posto que aquela era uma época em que os homens bem-nascidos — e os que queriam se passar por eles — usavam pó de arroz como se suas vidas dependessem disso.
Parte dessa preocupação com a elegância — não só das vestimentas, mas dos cenários em geral — me passou uma sensação de delicadeza, uma beleza primaveril, tal como é possível encontrar n’O Retrato de Dorian Gray. Existe aqui, pelo menos a meu ver, um esforço mais do que exitoso de promover uma estética refinada, contemplada pelos olhos de um jovem com desejo de se entregar — e, talvez, se fundir — à cidade de Londres.
Por conta disso, não é sem surpresa que Érico se deslumbra facilmente com tudo o que vê, cheira, prova e sente. Saído do Rio de Janeiro, que na década de 1760 era um lugar punido com as restrições impostas pela coroa portuguesa, Érico mergulha num oceano de luxos e extravagâncias, ostentações do high society londrino num tempo em que Londres estava começando a dar os primeiros passos para a industrialização.
Outra coisa que gostaria de comentar é o fato de que, no meio desse deslumbramento todo, Érico tem uma missão, não esqueçamos disso, que é investigar o contrabando dos livros eróticos. Logo se conclui que, para adquirir informações realmente relevantes, ele precisará se infiltrar nessa comunidade riquíssima da cidade. Desta feita, dão a ele um disfarce de barão, e como tal ele passa a adentrar os mais luxuosos salões e bailes do crème de la crème londrino.
O soldado hospeda-se na Embaixada do Brasil e rápido faz amizade com Armando Pinto, Secretário da Embaixada, e com Maria Fernanda Simões de Almeida, sobrinha do embaixador. Juntos, Maria e Armando reconstroem o guarda-roupas de Érico, das roupas de baixo aos chapéus. Ficam aliviados em saber que, pelo menos, Érico é bem-nascido, apesar de não ter um título de nobreza. Sua criação e formação lhe garantem um pequeno conjunto de habilidades que o tornam o espião perfeito para a dinâmica citadina e cosmopolita de Londres.
O Século XVIII ficou conhecido como Século das Luzes, pois temos nele a propagação do Iluminismo em uma Europa não-tão-longínqua-emergida da Idade das Trevas. Em sendo assim, cidades como Londres, Paris, Roma, Madri e Lisboa compõem o epicentro da arte, da ciência e das humanidades. Érico, que de besta não tem nada, sabe disso e usa as informações de uma vida de leituras a seu favor. Seu inglês quase sem sotaque e sua compleição pitoresca lhe concedem um sem-número de viradas de cabeça, mas sua discrição militar permite que passe despercebido sempre que oportuno.
Agora, se me permitem, entraremos numa parte mais alegórica da história. Estive conversando outro dia sobre o livro com minha vizinha, a quem chamarei aqui, para preservar sua identidade, de Maria Toshira. Em nossas conversas, compartilhei com ela minha opinião sobre a expressão “homens elegantes” talvez significar um pouco mais além de seu cercadinho semântico. Para quem não está entendo nada, valho-me de esclarecer que esses tais homens elegantíssimos da história, um bom bocado de vezes, expressam trejeitos delicados, conversam de forma espalhafatosa e, esporadicamente, não se recusam a dar o rabo.
Daí percebi que a história era na verdade um tributo. Um tributo a esta gente. A meu tipo de gente. Entendam como queiram, é claro, mas para este texto é a minha interpretação que importa, muito bem, obrigado. Nesse sentido, “homens elegantes” se torna quase um código imbricado de outros sentidos, dentre os quais poderíamos fazer uma substituição paradigmática da palavra “elegantes” por “homossexuais”. É sensato, entretanto, elucidar que a palavra “homossexual” ainda não tinha sido cunhada em 1760, portanto, para usar os próprios termos elencados no livro em alusão aos cavalheiros de bom gosto como eu, poder-se-ia dizer que, novamente, esses tais homens elegantíssimos fossem
“uma comunidade que tem em comum um único segredo, o qual o decoro tanto hesita e proíbe nomear que, por paradoxo, à guisa de buscar metáforas, multiplica seus nomes: mollies, fanchonos, bujarronos, páticos, invertidos, endossantes, macios, sodomitas, jesuítas, catamitas, ganímedes, sométicos, nefandistas, pederastas, maricas, pula-selas, fodineus [meu favorito], navegadores de barlavento, adoradores da Vênus Prepóstera ou cavalheiros da porta dos fundos […].” (p. 169).
Minha opinião chega a se concretizar? Ora, ora, leiam para descobrir! Ocorre que, a partir desse reconhecimento — isto é, a ciência de que há algo impuro no sentido bíblico por trás do enredo —, ganhamos uma camada toda nova para esta história. Consequentemente, o autor nos apresenta a um submundo londrino que, como ele mesmo comenta, pode até não ser composto de uma maioria, mas se forma de um demográfico razoável e rico o suficiente para promover tendências, ditar políticas e fazer parte da máquina de manipulação do poder na sociedade cristã. Estou me referindo a uma comunidade de homens elegantes [de novo] que, por acaso, desfruta da companhia íntima de outros homens elegantes [ahã, isso mesmo].
Faço essa piada do disse-não-me-disse, porque tudo é muito sutil na narrativa. Até que se torna bastante gráfico, se é que me entendem. Em outras palavras, até quase metade das 574 páginas do livro, nada do que eu comentei acima é apresentado de forma muito clara. O autor se utiliza, sabiamente, das aparências para sugerir que este ou aquele cavalheiro talvez se sinta mais à vontade nos braços de outros cavalheiros. Até que, após um baile sensacional até mesmo para os padrões de Londres, as cenas começam a sair da névoa para, enfim, confirmarem tudo aquilo pelo que ansiávamos.
Mudando um pouco de assunto, passemos ao vilão da história. É um tanto quanto desconcertante falar sobre ele justamente no fim do ano de 2020; parece haver uma conotação ainda mais caricata. Isto porque o vilão a que me refiro é ninguém menos que o Conde de Bolsonaro. Você leu certo. Eu poderia terminar a resenha aqui e ninguém teria do que reclamar, mas vou continuar pelo bem do texto. Coincidências à parte, vou deixar o próprio Érico descrever o conde para vocês.
“Olhar de colonizador, condescendente e paternal. É o olhar de quem considera a própria superioridade um fato estabelecido, uma verdade dogmática, e do alto de sua arrogância observa o mundo que o cerca como sendo habitado por selvagens ignorantes. Ao falar, inclina a cabeça para trás e ergue o queixo, tem um modo estranho de cobrir os dentes com o lábio superior, como se estivesse sempre, a todo instante e a muito custo contendo uma explosão de raiva. O canto esquerdo da boca é caído, como que congelado numa expressão de eterno desgosto com o mundo. Há algo de errado naquele rosto — mas o quê? É redondo e comum, emoldurado pela peruca branca, vistosa e cacheada. A pele do pescoço é murcha, coisa da idade — sessenta anos, talvez? Sim, há algo de errado com o rosto: o lado esquerdo não se move. Jamais. Nem a boca, nem a bochecha, nem o olho. Sua voz anasalada a entonação e os trejeitos de quem dá a entender que tudo é óbvio, tão óbvio que é sempre uma bobagem que ainda precise ser dito, mas ele o faz mesmo assim, uma concessão entediada em abrir a boca e estabelecer qualquer diálogo. Tudo nele exala arrogância.” (p. 146).
Será mesmo coincidência? Leiam para descobrir!
O primeiro encontro de Érico com o Conde de Bolsonaro ocorreu num baile realizado pelo vereador Beckford, um dos homens mais ricos de toda a Inglaterra cujo filho acabara de nascer e que, para celebrar o nascimento, resolveu dar uma festa digna do (no futuro) Grande Gatsby. Logo de início, o soldado e o conde se confrontam num embate de carteado, ambos demonstrando serem os melhores jogadores do recinto. Tudo nesse baile é descrito lindamente [destaque para a cena da biblioteca de doces], mas é sobretudo o duelo entre Érico e o conde, numa partida de uíste ricamente detalhada, que rouba o ápice da noite e se torna objeto das rodas de conversa pelos próximos dias em toda Londres. Depois desse evento, a investigação de fato começa a render boas descobertas.
Basicamente, isso é tudo o que eu posso vazar da história sem incorrer num cataclisma de spoilers. Em termos de escrita, Samir Machado de Machado é sem dúvidas um mestre em ascensão. Meu exemplar está cheio de marcações; uma verdadeira fonte de citações incríveis. Adicionalmente, o autor se utiliza da história para tecer críticas deliciosas ao Brasil, mas também à humanidade como um todo, coisificando o pensamento imundo dos nobres em relação à pobreza das pessoas comuns.
“[…] se der ao povo alguns livros, irão querer mais; se lhes der muitos livros, logo começam a ter ideias e a querer escrever os seus próprios, e então escreverão peças, e peças necessitam de músicas, e logo estarão compondo baladas, canções e então… — Bate com o punho na mesa, irritado com o que considera uma obviedade a qual os mais jovens são incapazes de compreender. — Então haverá algo em comum unindo os habitantes de Salvador aos do Rio de Janeiro, os mineiros das Gerais e os colonos do Sul. Haverá histórias. E o que acontece quando pessoas passam a compartilhar histórias? Descobrem que possuem problemas em comum, dificuldades e anseios comuns, e toda sorte de sentimento inconveniente que as histórias geram, criando o maior perigo de todos: o senso de comunidade.” (p. 53-54).
Viram só a qualidade do conteúdo? É um livro muito, mas muito bom mesmo, e que eu recomendo para todos que se interessem por uma trama recheada de informações históricas, mas que está longe de ser um afagador de ego para historiadores. Com doses essenciais de possíveis romances, algumas cenas quentes para o paladar de leitores e leitoras mais assanhadinhos, e um mistério investigativo que determina o ritmo dinâmico da leitura.
Só posso dizer que, tendo sido esta minha última leitura de 2020, pelo menos terminei este ano nefasto em uma boa sintonia literária. Para o futuro, resta-me caçar os outros títulos de Samir e torcer para que sejam tão bons quanto este. A julgar pela qualidade de Homens Elegantes, não acho que vou me decepcionar.
Isso é tudo por hoje. Espero que tenham gostado e nos encontramos numa próxima tietagem.
Phely Zanon Ovo!
Vlaxio.
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