edu basílio 03/03/2020trégua ad aeternum
um dos livros mais marcantes que eu li nos últimos tempos. martín santomé é funcionário de um enfadonho escritório de contabilidade. na aurora dos 50 anos e prestes a se aposentar, ele é, à primeira vista, o próprio clichê do homem de meia idade insípido e opaco (e meio preconceituoso!), de rotina sem maiores relevos. "a trégua" é o diário de santomé durante o ano que antecede sua aposentadoria.
já nas páginas iniciais fica claro que, a despeito das aparências, santomé é uma figura interessantíssima, muito mordaz, em cujo interior borbulha um ferino senso crítico, mas sobreposto a um fundo melancólico. pai de 3 filhos e viúvo desde os 28 anos, ele escreve que "(...) todo o mecanismo dos meus sentimentos ficou retido há vinte anos, quando isabel morreu. primeiro foi a dor, depois indiferença, mais tarde liberdade, ultimamente tédio. longo, deserto, invariável tédio (...)". mas ele teve o mérito de conseguir tocar o barco, pois "(...) seguir adiante com meus filhos era uma obrigação, o único escape para que a sociedade não me encarasse e me dedicasse o olhar inexorável que se reserva aos pais desalmados. não havia outra solução, e eu segui adiante. mas tudo foi sempre por demais obrigatório para que pudesse me sentir feliz (...)".
é nesse cenário sentimental árido que aparece laura avellaneda, funcionária nova do escritório, na casa dos 20 anos, e faz soar o sino no coração de santomé. a chegada de avellaneda traz-lhe uma trégua dessa vida cinzenta, fazendo-o redescobrir, não sem estranheza, o amor. acompanhamos então as observações terrivelmente sinceras de santomé sobre seu próprio envelhecimento, sua dúvida oscilante entre se aposentar de vez ou abrir mão do "Ócio Infinito" por mais um tempo, além de sua relação agridoce com os filhos. e ainda são impagáveis as reflexões que ele faz sobre aspectos diversos da vida...
...sobre sua relação com os colegas de trabalho, o distanciamento é evidente:
"(...) nos escritórios não existem amigos; existem sujeitos que a gente vê todos os dias, que se enfurecem juntos ou separados, fazem piadas e se divertem com elas, que trocam suas queixas e transmitem seus rancores, que reclamam da diretoria em geral e adulam os diretores em particular. isso se chama convivência, mas só por miragem a convivência pode chegar a parecer-se com amizade (...)".
...suas elucubrações religiosas são, no mínimo, provocantes:
"(...) francamente não sei se creio em deus. às vezes, imagino que, no caso de existir deus, esta dúvida não o desgostaria. na verdade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes para nos garantir nem sua existência nem sua não-existência (...)"
...e muitas de suas colocações são absolutamente atemporais (e transfronteiriças, diga-se de passagem):
"(...) porque, na realidade, o suborno sempre existiu, a acomodação também, os corruptos também. o que está pior então? depois de muito espremer, cheguei à convicção de que o que está pior é a resignação. (...) mas a resignação não é toda a verdade. no princípio foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde, a conivência. Foi um ex-resignado que pronunciou a célebre frase: 'se os de cima roubam, eu também quero'(...)"
mario benedetti conseguiu magistralmente mostrar nas entrelinhas o íntimo de um homem "comum" tão acostumado com a ausência da felicidade, que não sabe direito o que fazer com ela quando ela enfim parece se impor. é fácil se reconhecer um pouco no protagonista, meio ranzinza, meio carente, meio desastrado, mas de coração fundamentalmente bom (enfim, humano!).
acho que essa ressonância é que torna esse pequeno livro tão memorável.