Léo 23/07/2017
Ótima história, bom conteúdo, autor talentosíssimo
Lançado neste ano (2017), 'Passagem para escuridão', livro escrito pelo autor Danilo Sarcinelli e publicado pela Editora Verve, traz uma premissa com um teor um tanto sangrento e transmite um universo alarmante rodeado por reis, príncipes, traidores e personagens inesperados para um contexto sólido que muito reflete a simbologia da população mundial atual. Com desenlaces satisfatórios e razões aceitáveis, 'Passagem para escuridão' mexe com o psicológico do leitor e o faz enfrentar custosos paradigmas como o fanatismo religioso, muito manifestado através da cultura entremeada no enredo da obra. O autor conseguiu, neste primeiro volume, aprofundar os personagens e todas as suas motivações até um ponto certo, deixando em aberto alguns tópicos que certamente serão colocados em pauta no segundo volume. A ambientação traçada por Sarcinelli não é tão diferente das quais se encontram comumente em histórias do gênero, entretanto o autor soube a singularizar através de elementos como a cultura e simbologia que expressam muito bem os mitos, crenças e ideais da realidade da sociedade apresentada, não se restringindo às práticas ocultas e ousando com inteligência na questão da literariedade. Aliás, a ousadia é um dos pontos mais marcantes no autor, que não se poupou em salientar sentimentos nos protagonistas, co-protagonistas, antagonistas e até mesmo elementos personificados da história. Voltando ao ponto do cenário, em 'Passagem para escuridão' encontra-se um reino já cicatrizado por feridas antigas e que agora está em plena reestruturação, figurando a jornada de jovem príncipe Lúcio Dante. A predominância de referências como a utópica realidade, o sigilo moral e as desgraças no reino são bases do pano de fundo do enredo. O autor preocupou-se em preservar o lado real a todo tempo, mesmo quando os instantes fantásticos/abstratos aconteciam no decorrer da fantasia medieval. 'Passagem para escuridão' utiliza um modelo que traz fortes raízes da Fantástico Stricto Sensu ao tornar complexo o processo de formação dos indivíduos da história e ao racionalizar o pensamento crítico.
Danilo Sarcinelli demonstrou uma enorme habilidade ao dar profundidade a seus personagens e ao transformar instantes que pareciam vazios em grandes momentos. A insanidade do herói é um sinal bem oportuno que o designa, por fim, em muitos períodos, na qualidade de um excelente anti-herói ao lutar contra suas escolhas erradas e faltar-lhe, por pouco, atributos morais do velho herói clássico. Pontos altos como as intrigas no palácio envolvendo a família real, os amontoados de segredos escondidos nas sombras mais escuras do reino e a inveja e desonestidade que alguns personagens carregam em seus interiores servem como espelho da atual sociedade. Essa modelação foi desenvolvida de forma competente e, nesse quesito, o autor parece não ser um simples iniciante, pois utiliza bases de um forte pensamento teológico medieval. Ressalta-se o valor de sua ousadia, um fator que certamente o diferencia de outros autores ao dar à obra uma complexidade simétrica. Ao mesmo tempo, Sarcinelli aposta nas reflexões diretas de seus personagens que chegam a causar um "feedback interior" com o leitor, como no trecho em que Marco, Diana e Justiniano desvelam sobre as estranhezas do bosque real: "Só você, o senhor Max e Pandora estavam lá. E Lúcio. Só os quatro escaparam com vida da clareira... Isso é muito louco, não é? Num instante estamos aqui, brincando e conversando, e no outro podemos não estar mais. A vida é algo tão... frágil. Faz a gente pensar em todas as coisas que deixamos para depois..."
Com uma narrativa caprichosa e mesurada, o autor consegue envolver o leitor em uma espécie de teia que carrega também um ousado conjunto de suspense. Ao mesmo tempo, amplia sob a visão do leitor, a idiossincrasia de seus personagens, revelando também pesadelos e traições, enquanto rituais e demônios sinistros deixam brechas para viagens às sombras. Cheia de analogias, é impossível não entender que a obra é, na verdade, uma vitrine de nós mesmos. Nesse ponto, interpreta-se que a força antagonista também é necessária e valiosa para boas reflexões, ao passo que a busca pelo poder chega a ser tão fanática quanto as questões religiosa e moral. Em 'Passagem para escuridão' não há como encarar uma proximidade à natureza do império romano, onde a família era considerada sagrada e a religião baseada no culto aos deuses antigos, costumes fincados aos aspectos da vida e ao caráter cívico. Quanto a literatura, influências religiosas (motivo pelo qual a literatura romana iniciou-se) e políticas também são vistas na maneira em que Danilo Sarcinelli transmite a história das intrigas palacianas ao leitor. Alguns vestígios relacionados ao exílio, aos laços familiares e as leis são contemplados na obra, assim como uma série de fraudes políticas e religiosas que despertam as questões sobre a moralidade social e individual de cada personagem, a exemplo da lenda do deus-sol Ravi, do santo Grimório e também da espada solar. "Havia um ditado tiberiano que dizia que o valor de uma pessoa podia ser medido pelo volume de lágrimas derramadas em seu funeral".
Um dos diferenciativos enredatórios mais legais da obra é a presença da personificação do mal que colide com o intrínseco de Lúcio: o demônio Arkmal. Ainda nos primeiros capítulos já seria evidente entender que a jogada da obra seria um olhar mais preciso em cima da figura de Lúcio. Uma analogia mais precisa da necessidade da luta contra seus próprios fantasmas fica muito clara no primeiro trecho em que uma criatura sombria invade o labirinto dos sonhos e lembranças do príncipe e passa a questioná-lo com as próprias dúvidas do jovem: "A pergunta certa, príncipe, é quem é você?... Plante a semente da dúvida para ceifar a colheita da sabedoria. A curiosidade é intrínseca ao homem. Deseja aprender. Desejar saber quem é, por que está vivo... O ser vive, o ser afeta o mundo à sua volta. Mas isso é tudo, ou existe algo mais? Você é diferente, jovem príncipe... por dentro...". Essa é a parte mais umbrosa do livro e, nesse momento, através de um demônio, Lúcio e o leitor se veem realmente à frente de uma larga passagem para a escuridão. Sarcinelli usa citações mais pesadas que mexem com o emocional e que facejam com as crenças de cada um, trazendo à tona possíveis causas de pecados mais intensos na vida do homem: "Lúcio tentou se libertar, mas o demônio foi mais forte. Virou-o e o obrigou a ver o terror que se desenrolava no sopé do barraco. Um homem desnudo era esfolado pelas garras de duas criaturas. Uma mulher tinha os dedos arrancados, um a um. As lágrimas cegaram o príncipe por um breve momento". A logicidade da obra é cristalizar a moralidade em todas as suas formas e fazer o leitor combatê-la com veemência: "Íntegro, religioso, blábláblá... É útil se mostrar assim quando nos convém, mas um rei também deve estar preparado para que possa e saiba agir de modo contrário... Quando fiquei sabendo sobre os crimes que aconteciam no condado de Sila Martino, não hesitei... Rituais demoníacos de sacrifícios!...".
O relato e uso de demônios na história é justamente alertar ao leitor sobre a existência da obscuridade e da vivência de criaturas sombrias em si mesmo. Sarcinelli faz referências diretas aos rituais satânicos da era medieval quando relata as mortes de bebês recém-nascidos fatiados e jogados em caldeirões de água fervente; crianças empaladas e postas para assar nas fogueiras; e velhos torturados aos gritos até a morte.
A riqueza no vocabulário do autor merece aplausos também. O mesmo sabe criar diálogos intensos e usar palavras com muito requinte. Fica claro que Sarcinelli quis ressaltar a temática valor/moralidade ao colocar seus personagens à enfrentar seus próprios pesadelos como maneira de reaver seus valores esquecidos. A tese sempre foi bem defendida desde os tempos mais antigos como na antiga Roma. As lendas retratadas na obra servem de esqueleto para o clímax oriundo desenvolvido pelo autor. Os personagens Cesar, Max e Justiniano defendem uma nomenclatura que remete, sem contestação, ao período e reino citados anteriormente. Já Lúcio, até mesmo por sua caracterização e condição psicológica massacrada ao duelar constantemente contra si mesmo, traz fortes resquícios da era dos deuses e anjos. Seu nome é uma profunda elucidação ao próprio Lúcifer, o maior de todos os demônios.
De fronte de uma obra onde a complexidade na criação é um ponto muito forte para qualificar o autor, aquele que se arriscar nas primeiras páginas do opúsculo não encontrará somente as velhas passagens e elementos do universo fantástico medieval, mas entrarão em um espaço-tempo em que a principal finalidade é encarar a dura realidade da qual muitos tentam fugir: o seu próprio eu; aquele tão obscuro e doloroso quanto a verdadeira passagem para escuridão. O epílogo da obra é também, maravilhoso.
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