Bruno Araújo 10/10/2022
Lydia está morta...
"Lydia está morta. Mas eles ainda não sabem disso". Sim, não é spoiler, é exatamente assim que começa a história: pelo fim, sem rodeios, cortante, de uma violência velada e sem espaço para a piedade. Lydia morreu. Mas é preciso pedir licença para a gramática e toda a sua definição de intransitividade verbal porque NECESSITAMOS saber como, onde e quem a matou.
Contudo, antes de mais nada, preciso partir do início, mas não da narrativa, e sim do começo do meu envolvimento com Celeste Ng. Em algum momento durante os quase dois anos de quarentena, eu e algumas amigas ficamos completamente obcecadas por "Little fires everywhere", uma minissérie adaptada de um livro homônimo escrito por Ng. Não escondo de ninguém a minha admiração pelas as atrizes Kerry Washington e Reese Witherspoon; e são elas as fenomenais protagonistas desse seriado muito bem executado. E por conta da minha grande curiosidade em me envolver ainda mais com a obra, fui em busca do livro. Porém acabei encontrando uma publicação anterior e decidi experimentá-la.
"Tudo o que nunca contei", um título que, por sinal, é muito sugestivo, conta a história de uma família norte-americana que procura, ao mesmo tempo que tenta fugir, a sua adequação aos moldes familiares tradicionais das décadas de 60 e 70, mas que falha catastroficamente.
James, filho de imigrantes chineses, vítima de racismo e envergonhado de sua ancestralidade, busca a todo custo apagar a sua identidade da maneira que conseguir encontrar e, por isso, torna-se professor universitário e historiador da cultura americana com o seu principal objeto de estudo sendo os caubóis (quer algo mais americano do que isso?).
Marilyn, por sua vez, completamente inserida neste contexto familiar tipicamente americano, tenta escapar disso o mais rápido e o mais longe possível. A sua mãe é uma fiel seguidora de Betty Crocker e uma dona de casa caricata: leciona "as lições de boas maneiras" para meninas em uma escola e quer que a filha também siga o mesmo caminho com casamento, casa, marido e filhos perfeitos. Marilyn, contudo, não quer ser mais uma a perpetuar esse tipo de comportamento e decide que será médica e independente de qualquer figura masculina.
Em meio às aulas na universidade, ambos se apaixonam um pelo outro e tudo o que eles nunca imaginariam acontecer, acontece: para James, uma mulher americana ser capaz de amá-lo apesar de suas características orientais; para Marilyn, se apaixonar inesperadamente por um homem fora dos padrões ocidentais que nem ela e nem sua mãe planejaram.
Mas por terem seus planos frustrados, as suas vidas tomarem um rumo súbito e estarem mergulhados e afetados pelos preconceitos enraizados na sociedade (racismo, machismo, xenofobia e homofobia), essa família está destruída, nós a arruinamos e como destruímos muitas outras, e isso é percebido antes mesmo da morte de um dos seus.
Nathan, Lydia, Hanna, frutos desse casamento, desde muito pequenos são obrigados a enfrentar o desequilíbrio de seus pais, além de seus próprios problemas íntimos.
"Tudo o que nunca contei" é um livro necessário para a discussão dessas instituições familiares tradicionais indubitavelmente falidas. A narrativa não teria a sua genialidade se Celeste Ng não tivesse construído este narrador onisciente perfeitamente dosado com pequenas quantidades de ironia. A leitura enjaula a nossa atenção e ficamos cada vez mais envolvidos com os sujeitos dessa família que experiencia os lutos e os traumas da morte, da incompreensão, da dúvida, do abandono, da traição e das expectativas impostas e não correspondidas. Tinha já algum tempo que eu não era afetado por uma literatura assim. Ng trouxe, para mim, uma deliciosa, porém impactante e emocionante surpresa.